domingo, dezembro 18, 2005

Como bolhas de sabão


O trem fluía inexorável, iluminado pelo céu inflamado de outono, sangue correndo em artéria de ferro, e já contava três dias de viagem quando o fantástico se iniciou no primeiro dos oito vagões que cruzavam o meio oeste transportando aço e gente, fato esse inteiramente desacreditado não fosse o testemunho de figuras eminentes como o senhor de rosto emoldurado por grossas suíças, um lorde inglês, talvez, ou o dono de todas as terras até depois do horizonte, que, chamado por um sujeito atarracado de pele chamuscada a carvão, respondeu-lhe, Espere até eu acabar este cigarro, ao que lhe foi redargüido pelo gordo rapaz, seu antípoda, contrariando a autoridade a ele conferida por seu porte fino, Qual cigarro, senhor, porquanto nada via em suas mãos ou na boca, muito surpreendendo o cavalheiro, certo de ter justo naquele instante acendido um cigarro, Eu teria pressa se fosse o senhor, e teria, de fato, se ao menos supusesse que aquele homem não lhe prestava senão um favor, pois se aproximavam a passos largos de descobrir se eram afinal vítimas ou sobreviventes, diferença sutil entre a vida e a morte, O que foi, meu jovem, exasperou-se, e em vez de ser respondido com palavras, sentiu puxada a manga do sobretudo de casimira, com tanta força que só não rasgou porque o tecido era de qualidade, até entender a gravidade da situação, porque olhou pela janela do trem e viu que seu fluxo inexorável os levaria a um precipício sem trilhos, Olhe lá fora, preferiu, contudo, não ter olhado, pois melhor é desconhecer o futuro a sabê-lo irrevogavelmente inexistente, no susto tentou puxar a corda do freio, ou algum modo de avisar ao maquinista, Será que o condutor não viu, perguntou-se, mas corda não havia, enquanto os outros passageiros permaneciam na mais completa ignorância, apenas um ou outro a notar o sumiço do relógio de bolso e a peruca, que vergonha, de repente já não cobria mais a cabeça, óculos, carteira, prendedor de gravata, Onde foi parar, cada um procurava pelo seu perdido, assento, alguém foi ao chão, e o homem de suíças filosofava sobre a razão das coisas e se os dormentes se tinham ido como aqueles objetos desaparecidos, bolhas de sabão evanescentes, antes aqui, agora sabe-se lá onde, no Mundo das Idéias ou entre as dobras do universo, em qualquer lugar menos ali onde estavam havia menos de dois minutos, até que se lembrou do abismo e de quanto tinha a fazer antes de pensar, devia agir, mas como se, ainda que soubesse conter o trem, nem isso estava ao seu alcance, se tudo o que lhe vinha à cabeça era Platão e Jesus Cristo, tão contrários quanto ele e o acarvoado jovem que o chamara e agora, à janela, fazia o sinal da cruz, reservando para si um lugar no céu para os próximos instantes, até que, como se atendendo às suas preces, puf, esvaeceu-se o trem também, embasbacando a todos que nunca tinham visto algo tão grande desaparecer assim por completo.