Como aprender edmotês em braille
"Aystelum", novo disco de Ed Motta, foi lançado no início do ano, mas se formos depender da imprensa jabá-dependente para conhecermos a obra, estamos ferrados e mal pagos. Eu não tinha sequer ouvido falar, nem do disco, nem dessa palavra título, tão edmotês quanto "Dwitza" e "Poptical", nomes dos dois álbuns anteriores.
O que de largo Ed Motta tem em sua circunferência abdominal, também tem no espectro de suas influências musicais, no grau de conhecimento sobre os mais diversos assuntos - de vinhos e cervejas a histórias em quadrinho, passando pelo cinema europeu, literatura de mistério, culinária internacional etc. Nada é suficiente, sempre é possível aprender mais um pouco, aprofundar-se naquilo que já sabe tanto, mas hoje um pouco mais que ontem. Em alguns, esse espírito se traduz em novas importantes decobertas científicas, explicações para o que antes se assumia inatingível; em seu caso, surgem ritmos, harmonias e melodias inimagináveis, combinações insólitas com um grau de acerto altíssimo, próximo aos 100%.
Deixando elogios genéricos, voltemos a "Aystelum".
Pegue duas xícaras de free-jazz, as mesmas xícaras de Miles Davis, John Coltrane, Chick Korea; adicione quatro colheres de sopa de samba de raiz, e mexa bem, como mexeria Nei Lopes e Alcione; a essa massa misture três punhados de musical da Broadway, com punhos tão grandes quanto de Claudio Botelho, Charles Moëller e Stephen Sondhein; complete com soul e rhythm & blues a gosto, ao gosto do Ed Motta e não ao seu, tipo Stevie Wonder e Steely Dan.
Et voilà! Sua receita está pronta. Não é fácil de preparar: primeiro, é preciso ter muita visão para misturar ingredientes tão diferentes e ter certeza que o resultado não vai ser decepcionante. Um de menos aqui, um de mais ali, e o cozimento desanda. Mas com Ed Motta de Mestre Cuca, e provavelmente ele adoraria essa metáfora, a massa segue saborosa para a mesa do gourmet.
A banda base é formada por Andrés Perez (sax tenor), Jessé Sadoc Filho (trompete), Renato "Massa" Calmon (bateria), Alberto Continentino (baixo), Paulinho Guitarra (óbvio), Rafael Vernet (teclados mil) e Ed Motta (voz e teclados). Aqui e ali, convidados mais que especiais se somam ao grupo, como Laudir de Oliveira, ex-baterista do Chicago; Armando Marçal, ex-percussionista do Pat Metheny Group; e Alcione, cantando em dueto com o dono da festa.
O disco começa com Awinism, um jazz tão free quanto a sua criação lingüistica, que pode ser traduzido como "Jessé incorpora Miles Davis numa sessão espírita dentro do estúdio".
Segue-se com Pharmacias, uma parceria de Nei Lopes com Ed Motta que resultou numa quimera: a letra cantada é puro samba, o acompanhamento é puro jazz. Não fica forçado e nem atravessa, o que é mais impressionante. Mostra que há sempre um caminho por onde fugir para quem quer inventar. A letra é bonitinha, nostalgia dos tempos em que Farmácia se escrevia com PH, com seus tônicos, infusões e ungüentos.
Aystelum, a faixa-título, conta com os vocalises em edmotês que marcaram o disco "Dwitza", sua estréia no instrumental cantado. Ele conversa com o trompete, sem palavras, e se entende perfeitamente o que eles querem dizer. O ouvinte fica, como eles... sem palavras.
É muita gig, véi! quer dizer muito trabalho no estúdio, na gíria dos músicos, e dá nome à quarta faixa do disco. Ed Motta inventa: o pedal de wah wah geralmente distorce o som de guitarras, ocasionalmente de baixos, mas ele resolve usar no teclado para distorcer o timbre do piano. O efeito é, no mínimo, sui generis. Só ouvindo para entender.
Samba azul traz a participação especial de Alcione cantando mais um samba de Nei Lopes, esse mais com cara de samba, mas que, se em inglês, poderia ser cantado igualzinho por uma Ella Fitzgerald e aí chamaríamos jazz. É tudo uma questão de ponto de vista: o jazz deles e o nosso samba têm vários genes em comum.
Segue-se com Balendoah, uma versão jazzística do musical "7", parceria de Ed Motta com os autores da Broadway carioca, Claudio Botelho e Charles Moëller. As três faixas seguintes são tiradas do próprio musical: Abertura, que não por coincidência ocupa a sétima faixa, Na rua e Canção em torno dele. Trazem Suely Franco no papel de "Velha senhora", Marya Bravo como "Cartomante", Alessandra Verney e Gottsha como "Prostituta 1 e 2", respectivamente, e Cristiano Gualda fazendo o "Jovem".
Depois do passeio pela Broadway, A charada traz o bom e velho Ed Motta em parceria com Ronaldo Bastos, o bom e velho funk-soul-R&B de outros carnavais.
Patidid é uma musiquinha animadinha, como um jazz de big band pautado no sax e trompete, a cozinha acompanhando, e o vocal em edmotês correndo solto. Pena que é curtinha: não dá para botar numa pista de dança porque, quando as pessoas finalmente vencessem a inércia, já estaria no fim.
Tudo termina com Guezagui, uma música bem mais-ou menos, só para terminar mesmo. Ed Motta fica repetindo o título, seja lá o que isso signifique (não que importe) em meio a outras frases em sua língua particular. Solos simples, como se já estivessem cansados de tocar ao longo de todo o disco, a base tão repetitiva quanto o canto, Guezagui Guezom...
Podia acabar melhor o que antes foi tão bom! Mas que não seja por isso: o disco vale muito a pena para quem quer fugir do marasmo do pop radiofônico e das críticas como cheiro de jabá.
2 Comments:
oi Dr. Ph!
você merece!
beijos e obrigada pela visita.
já linkei você nos "olhos".
Beijos mil,
day
ta indo, tou gostando
beijocas
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