Karma Police
Da série "Crônicas inesquecíveis já quase esquecidas", resgato o texto que escrevi quando fui ao templo hare krsna da Barra, ocasião que eu cito na crônica anterior. Editado, porque tem coisas ali que eu não gostaria de repetir, mas nada que estrague o bom andamento do texto.
Sabe aquela história de "mares nunca dantes navegados"? Pois é, hoje eu naveguei um desses mares. Não só eu nunca tinha navegado como nunca tinha imaginado que um dia navegaria... ainda mais sozinho e por conta própria.
Bom, indo direto ao assunto: hoje fui conhecer um templo Hare Krsna. E descobri que se escreve exatamente assim, sem o "i" nem o "h". "Como eu fui encontrar esse templo?", alguém perguntaria. Andando pela Estrada do Açude, no Alto da Boa Vista, encostei o carro no lugar onde duas mulheres vendiam um adesivo de paz. Olhei aquilo por tanto tempo que fiquei sem graça de negar alguns centavos. Perguntei qual era a causa, e uma delas me explicou que estavam amgariando fundos para a missão Hare Krsna. E assim descobri que o tal templo fica a poucos quilômetros da minha casa.
Saí de casa sem dizer onde iria. Para a minha mãe, eu fui dar uma caminhada. E não é mentira... dá no mínimo uns 2 quilômetros. Sabia mais ou menos onde era, mas não o local exato. Andei procurando, olhando para os dois lados da rua, mas só o que eu encontrei foi um sujeito careca, com um rabinho atrás da cabeça e trajando um vestido laranja. Supus que ele saberia... Perguntei-lhe e ele tinha acabado de sair do templo. Voltamos um pouco, eu já tinha passado pela porta sem notar. Mas como notar se é uma casa normal, igual às outras?
O tal rapaz se apresentou como bakhta André. Isso quer dizer que ele é devoto a Krsna. Acompanhou-me até o templo e me mostrou o altar e suas divindades. Contou um pouco da filosofia e disse que dali a pouco estaria acontecendo uma cerimônia com música e dança, comidas vegetarianas e tudo o mais. Se já estava lá, por que perder? Nesse tempo, descobri que o motivo inicial da minha peregrinação tinha sido em vão: a moça tinha dito que haveria cursos de yoga... só que eu queria o hatha-yoga, aquele das posturas e técnicas respiratórias; e lá eles só praticam o bakhti-yoga, o da devoção.
Fiquei mais pelo que o André disse do que pela filosofia em si. Ele me emprestou um livro e eu o li enquanto não começava. Acabei achando bastante interessante, totalmente diferente do que el acreditava. O único problema para mim é que para seguir a doutrina tem que acreditar em Deus, e eu já sou reprovado nesse primeiro quesito. Mas um argumento para a existência de Deus me pareceu bastante convincente: segundo o livro, para toda ação existe um componente físico e um psicológico. Assim, para alguém pintar um quadro, a ação física é movimentar os músculos a fim de manusear o pincel; enquanto a ação psicológica é a vontade de pintar. No início de tudo, a ação física foi o Big Bang. Mas qual foi a ação psicológica? Isso serviria para qualquer fenômeno da natureza: qual a vontade por trás de tudo?
Enfim, para mim não tem vontade nenhuma e pronto. Mas ainda assim eu vou ter que justificar a minha resposta a partir dessa pergunta. E ainda não consegui... Talvez a premissa esteja errada, querer comparar uma ação humana com um fenômeno da natureza. Mas por que não? É, isso embolou o meu meio de campo...
As músicas prometidas começaram às exatas 6h da tarde. Não precisei esperar muito, não cheguei muito mais cedo que isso... A base melódica era mantida por um instrumento de teclas com fole, parecido com um acordeão, só que de chão para as pessoas poderem ficar sentadas. Ainda vou querer saber o nome disso... O som é muito bom! A base percussiva tinha pratos e sinos de vários tamanhos, e algo parecido com um atabaque, mas com formato diferente. Eles entoam mantras em vários ritmos possíveis e imaginários, até perto de samba eles chegaram. As letras não têm muito mais que três palavras, mas a variedade de músicas é enorme. Repetem à exaustão:
"Hare Krsna, Hare Krsna
Krsna Krsna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama
Rama Rama, Hare Hare"
O culto propriamente dito descobri ser uma aula semanal sobre um versículo do livro sagrado Bhagavad-Gita. Cada semana, o mestre lê em sânscrito o versículo escolhido, traduz para o português e discute com a platéia o que aquilo quer dizer e como está inserido no contexto do livro. Eu não esperei até o fim: ele começou a ler, eu não entendi nada, todo mundo repetia, eu saí e fui ler do lado de fora. Mas não conseguia ler: era só um devoto me ver sozinho e sentava do meu lado para falar sobre a filosofia de vida, sobre Krsna, os mantras, os yogas, as divindades e tudo o mais. A moça que me vendeu o adesivo no início da história, pois então, descobri que ela é conhecida por um nome em sânscrito, mas que tem o seu nome normal para as ocasiões normais; mas que o seu filho, que não parava quieto, tem o nome hare krsna na certidão de nascimento.
Depois teve mais música com a abertura do altar. Só que dessa vez, estavam todos de pé, dançando e pulando como se estivessem em um show de rock. Mas no lugar de canções de rock, ouvia-se o mesmo mantra "Hare Krsna" repetido e repetido. De acordo com um outro bakhta, toda a doutrina deles se baseia em estudar a combinação em quatro versos dessas três palavras. E no fim de tudo, o mesmo mantra foi repetido mais uma vez ao ritmo de Parabéns pra Você em homenagem ao lider do templo que aniversariava.
Acho que vou voltar domingo que vem...
Fim da "Crônica inesquecível já quase esquecida".
***
Ian Anderson é um dos poucos flautistas do rock. Fundador do Jethro Tull nos anos 60, ele diz em uma entrevista para o DVD "Noyhing is Easy - Live at the Isle of Wight 1070" que escolheu a flauta depois de tentar a guitarra, pois nunca seria como seus ídolos Jimi Hendrix e Eric Clapton. Não só adotou um instrumento diferente para o blues rock pesado que eles pretendiam adotar (logo substituído pelo rock progressivo) como desenvolveu a técnica bastante sui generis de tocar apoiado numa perna só, com a outra cruzada na frente do joelho.
Sem entender por quê, a comunidade indiana começou a chiar, a boicotar a banda, a quebrar os discos. Ian Anderson não sabia que estava imitando a atitude clássica da divindade vishnu.
Foi um susto. Compreendendo, contudo, a reação hare krsna, Anderson se explicou - não mudou sua forma de tocar, mas se explicou - e todos viveram felizes para sempre. Até que vieram os anos 80 e a maioria das bandas de rock progressivo foram estragadas.
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