sábado, março 11, 2006

O Haiti não é aqui; Medellin é aqui


Sarajevo, 1914. O assassinato do arquiduque austro-húngaro Franz Ferdinand é historicamente considerado o estopim da Segunda Guerra Mudial, o evento que engatilhou todos os acontecimentos que havia muito estavam engasgados, qual espinha de peixe armamentista, no pescoço* de toda a Europa. A política internacional corria à máxima capacidade pulmonar, com tratados, acordos de ajuda militar e não agressão, sobre a lâmina de uma faca de dois gumes. Qualquer escorregão imergiria a Europa numa poça de sangue. E o resto do mundo, por conseqüência. Como de fato aconteceu.

* Esse texto foi escrito diretamente em Português. "Pescoço", aqui, quer dizer pescoço mesmo, guardada a metáfora; não é, portanto, uma tradução mal feita do francês "cou".

Rio de Janeiro, 2006. Há pelo menos três décadas os cariocas vivem uma guerra civil não declarada. Como chamar de outra forma a situação em que a Polícia Militar defende a ordem pública empunhando fuzis de alta destruição, contra bandidos armados de granadas e artilharia anti-aérea? Enquanto isso, o cidadão comum, médico doméstica empresário gari economista pedreiro banqueiro bancário, é encontrado por um míssil perdido.

O cúmulo da falta de repeito às instituições se deu com a invasão do quartel de São Cristóvão. O mesmo Exército que nos traz lembranças recentes tão amargas aparece agora como vítima do roubo de dez fuzis e uma pistola. Tão vítima quanto toda a população carioca, que vai ver essas armas usadas contra a sua cabeça.

Se o Exército não se tivesse levantado, seria o fim definitivo do Rio de Janeiro; pois se o povo, representado pelos três níveis de governo, está parado diante dos acontecimentos, resta a quem tem o único poder que o tráfico de drogas respeita: contingente e armamento.

Não defendo a instalação de uma guerra; defendo, sim, o reconhecimento de que a guerra existe, eu queira ou não, o Sr. e a Sra. Garotinho queiram ou não, Sr. Leonel Brizola (esse já não reconhece mais nada), Sr. Luiz Paulo Conde e Sr. César Maia queiram ou não. Porque da negação nasce a inércia.

Aí vem a pergunta: essa guerra precisa necessariamente do Exército?

Os jornais cariocas noticiaram nas últimas semanas que existem milícias mafiosas comandadas por policiais civis e militares que tomaram para si o poder paralelo de algumas favelas, após destituir, prender, matar os traficantes. No lugar deles, agora são os policiais que cobram os impostos informais em troca de proteção (leia-se: em troca de não ter a sua vendinha saqueada, incendiada, possivelmente com você dentro).

Se a inteligência da chamada "banda podre" consegue, por que não a boa polícia? Talvez porque achar a tal boa polícia é como marcar uma molécula de água com hidrogênio radiativo e jogar no oceano. Vai encontrar! Mas será que o Exército também não tem lá a sua "banda podre"? Com certeza: Rubens Paiva, Vladimir Herzog e outros tanto que o digam, de onde estiverem.

O Exército cerca as favelas e fecha as saídas do Rio de Janeiro. Há quem defenda um pente fino nas comunidades, como várias cartas a O Globo desde o início da ação. Há também quem seja contra, claro, uma atitude como essa nunca vai ser unânime. Para mim, se é para revistar todas as casas, interrogar cada morador, procurar por drogas e armas, por que se restringir às favelas? No meu condomínio, classe média-alta carioca, que eu saiba (e eu sou o último a saber, pior que marido traído), pelo menos dois jovens já foram presos por tráfico de drogas.

O tráfico está lá tanto quanto está aqui. É um câncer metastático, que quando se pensa extirpado até a última ponta, tempos depois reaparece onde menos se esperava. Está nos artistas cheiradores de cocaína, nos adolescentes fumadores de maconha, no ácido das raves, na cola das ruas. Mas estes são apenas clichês: a droga pode estar em qualquer lugar a qualquer hora.

O tráfico, por ser fora da lei, é onde vigora o capitalismo mais selvagem, a lei da oferta e procura em sua essência. E dá mais dinheiro, a quem se disponha a pagar o preço de morrer jovem, do que qualquer outra opção de vida. É lucrativo porque tem quem queira; e tem quem queira porque a sociedade é permissiva. Dizer não a um cigarro de maconha é pagar mico, é careta, quando o errado é na verdade quem oferece.

Eu mesmo me acho estranho escrevendo isso, tão conservador e tão realista.