quarta-feira, março 01, 2006

Mar da tranqüilidade


Existem várias formas de se contar a História do mundo, e uma delas é através das guerras. Se a França é aquele hexágono (de uma geometria porca, é verdade, mas eles acham que sim...) no meio da Europa, e não um pouco mais para cá ou para lá; se o Havaí pertence aos Estados Unidos, e não a alguma nação ilhéu do Pacífico; se os limites territoriais do Oriente Médio dançam ao vento feito as dunas no deserto, ao sabor de sangue e petróleo; se o mundo, enfim, História e Geografia reunidos neste conceito, é como hoje o conhecemos, devemos isso a uma sucessão interminável de lutas, combates, batalhas, guerras que desenham fronteiras e moldam mapas.

Existe lugar mais bonito que a Costa Verde, como é chamado o litoral Sul Fluminense, desde Mangaratiba até Paraty, que se fecha na recatada Baía de Angra dos Reis? Bom, possivelmente existe, mas não na pequena porção de mundo que me foi permitido conhecer até hoje. E mesmo entre turistas profissionais, como certa vez atestou a revista Caminhos da Terra, têm esse paraíso em alta conta. Como é o caso do paisagista Burle Marx, que se declarou, à ocasião da Eco-92, um apaixonado por Paraty, um exemplo de preservação do patrimônio histórico e ambiental. Amyr Klink, empresário naval e lobo solitário dos sete mares, paulista de nascimento e paratiense de adoção, concorda. O homem que por mais de uma vez invernou na Antártica tem na enseada de Jurumirim o seu porto seguro.

Mas até aquele mar verde, reflexo da Mata Atlântica ali sobrevivente, já foi palco de muito derramamento de sangue. O Brasil português tinha pouco mais de meio século quando, entre 1554 e 1567, os colonizadores, aliados aos guaianazes através do casamento entre João Ramalho e a filha do cacique Tibiriçá, lutaram contra a Confederação dos Tamoios, reunião dos chefes indígenas do litoral sul fluminense e norte paulista liderada pelo tupinambá Cunhambebe, hoje nome de praia e ilha de Angra dos Reis. Com a chegada de Villegaignon e a esquadra francesa, estes se aliaram aos tamoios, aumentando o conflito na região.

Um século depois, a vila de Paraty veio a se emancipar após uma série de revoltas populares, culminando com a primeira formação da Câmara Municipal em 1667. Conta-se que, juntamente a Campos dos Goytacazes, no norte do Estado do Rio de Janeiro, foram as duas únicas cidades brasileiras a serem emancipadas através de revoltas populares.

Tudo isso é passado, mas é exatamente do seu passado que Paraty vive. Recebe milhares e milhares de turistas anualmente, de todos os cantos do planeta, desejosos de conhecer a cidade capaz de preservar o calçamento pé-de-moleque, as casas de arquitetura colonial, a Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Remédios. Se por tanto tempo, até a construção do trecho Rio-Santos da BR-101 no início da década de 80, esteve isolada, acessível apenas pelo mar, hoje os visitantes também podem chegar por terra ou ar.

Meu sogro tem um veleiro de 26 pés aportado na Marina Bracuhy, em Angra dos Reis. O barco é um hobby para ocupar sua aposentadoria. E, sempre que pode, recebe família e amigos para um passeio pela maravilhosa baía de Angra. Prefere, é verdade, ficar sozinho, ir para onde o vento sopra, sem compromisso de voltar hoje ou amanhã. Para esse carnaval, no entanto, ficou combinado de nos encontrarmos em Paraty. Ele já estaria lá, com uma vaga alugada na Marina do Engenho.


Carnaval, feriado de cinco dias, o trânsito sempre promete. No ponto onde a Rio-Santos brota da Avenida Brasil, em Santa Cruz, quatro pistas se transformam em uma. Impossível não haver congestionamento em dias de maior fluxo. Tentamos sair cedo, mas nem isso adiantou: domingo, 8 horas da manhã, já tinha carro a perder de vista. Por maioria simples de dois contra um, fui voto vencido: meia volta, tomamos a Via Dutra até Piraí, de onde sai a estrada para Angra dos Reis através de Rio Claro. Talvez tenha mesmo sido melhor; impossível ter certeza. Quatro horas e meia de viagem, ufa!, chegamos a Paraty em tempo de almoçar.


A marina, quem diria!, é de propriedade do Amyr Klink; e lá estavam as duas versões do Paratii - o primeiro, que o levou sozinho para a circunavegação polar e invernagem antártica, descrito em "Mar sem fim", no pier a três barcos de distância; e o segundo, com que atravessou todo o Atlântico de Norte a Sul em "Paratii entre dois polos", ancorado um tanto mais longe.

Com apenas a tarde para passearmos, Jorge, el comandante, nos levou até a Praia do Engenho, uma ponta além da enseada de Jurumirim, onde Amyr tem uma casa acessível apenas de barco. Adepto do isolamento, não deve estar satisfeito com a fama que seu reduto particular ganhou: vários veleiros e lanchas enchiam a enseada, como paparazzis à caça de uma foto com o ídolo. Mas no Engenho, para onde fomos, não estava tão cheio de gente.

Eu e Sabrina fomos nadando até a praia. No meio do caminho, fomos alertados: "olha, uma tartaruga!" Não sou louco de nadar de óculos: tudo que eu vi foi uma protuberância saindo da água, e acreditei se tratar de uma tartaruga. Melhor que um tarado nu nadando de costas. Voltei para pegar os óculos de mergulho, mas ela já tinha ido embora. Disse o nativo que a tartaruga usa a bóia ali instalada como abrigo, indo e voltando ao seu bel prazer. Mais tarde, já estávamos deixando a praia, quando ela voltou para aquele mesmo lugar. Enorme, o casco devia ter meio metro de diâmetro. Não é história de pescador!

No dia seguinte, com mais tempo, tomamos o rumo leste para a Ilha da Cotia. O céu nublado não diminuiu a temperatura. Faça sol, nuvem, chuva, não importa: o calor é o mesmo. Eu e Sabrina saímos para um passeio aquático: eu a nado, que é para me exercitar e perder os quilos acumulados; ela a remo, que é para não se molhar, fortalecer os braços e, principalmente, impedir que eu fosse atropelado por algum barco. Não é muito fácil de se ver um nadador no meio daquele mundo de água. Algumas centenas de metros adiante, subi no bote, e ela continuou remando, para felicidade de um grupo de americanos a bordo do Semper Fidelis, que gostaram de ver a mulher fazendo força no lugar do homem. Fizemos um pitstop no barco deles, e acabamos dando carona para duas meninas que queriam ir à praia.

Nas duas noites fomos ao centro histórico de Paraty. Talvez se trate do maior shopping center de arquitetura colonial do mundo. As casas são lojas de souvenirs, restaurantes, bares... E, inclusive, o Pub Paraty, reduto da juventude rock & blues do sul fluminense. Infelizmente não tive oportunidade de conhecer a casa; Sabrina, Sônia e Jorge sequer pensariam no assunto. Mesmo as ruas viraram loja: fazedores de bijuteria, vendedores de docinhos, e até um pintor-grafiteiro trabalhando ao vivo.

Carnaval é bom, feriado de quatro dias; mas acaba. É tempo de voltar, trabalhar feito gente grande, ganhar dinheiro para um dia ser eu a convidar. Mas, em tempo, por que comecei a falar de guerras, alguém mais curioso há de perguntar. Para bom entendedor, meia palavra basta. O texto até aqui deve ter sido suficiente.