terça-feira, janeiro 31, 2006

Boa viagem!

O dia era 12 de fevereiro de 1993. A professora de Redação pediu para que escrevêssemos uma carta para alguém, qualquer um, que dissesse qualquer coisa. Era só um exercício do formato de carta, que dois anos mais tarde cairia no vestibular da Uerj.

Meu bisavô se chamava Antônio. Ele morreu em 1989, eu tinha 10 anos. Vendo minha bisavó chorar, meu irmão disse: "Bisa, não chora... você vai ser a próxima!". As palavras insólitas de um menino de 4 anos fizeram efeito: o pranto secou e dali para frente ela pareceu bem melhor. Meu bisavô fazia aniversário dia 12 de fevereiro, e tinha completado 81 anos.

Eu tinha que escrever uma carta. Sobre o quê? Qualquer coisa. Para quem? Qualquer um. Muito vago. Pensei "vou escrever para o meu biso que faria aniversário hoje". Minha carta não falava de morte, mas viagem. Dizia que ele tinha ido para longe, mas que um dia todos nós voltaríamos a nos encontrar. Era impessoal, tipo "Caro Antônio", porque eu, já expert em esconder sentimentos, não queria que soubessem do que se tratava de exatamente aquela carta. Eu a guardei, tenho aqui em algum lugar; dia desses eu acho e transcrevo para cá.

Marcio errou: minha bisavó não foi a seguinte. Etienne, assim ela se chamava (em francês o nome é masculino, mas tudo bem...), ainda viveu para ver a morte do genro, de câncer de cérebro, e da filha, que após um AVC ficou 7 anos de cama; antes disso, ela morava com os meus avós, e precisou se mudar para a casa da outra filha. Também perdeu uma filha de criação, uma amável menina de 52 anos com síndrome de Down. Aos 85 anos teve que operar um câncer de mama, e ainda viveu mais 11 anos depois disso.

Na sexta-feira, 27 de janeiro, ela não acordou. Já não sabia em que época vivia, para ela meu bisavô tinha saído para o trabalho, "ele conseguiu emprego na Matarazzo, mas ganha muito pouco". Ele trabalhou na Matarazzo na década de 30! Não reconhecia as pessoas, até porque ninguém de nós existia nos anos em que sua cabeça estava.

Meu tio-avô me ligou, pediu para eu ir lá. "A acompanhante disse que ela não está respirando". Cheguei em 10 min, o tempo de avisar meu staff, tirar o carro do estacionamento do HUPE e andar menos de 1 km. Não só tinha parado de respirar como os dedinhos já estavam arroxeados, cianóticos. "E aí, Flavio", perguntou minha tia, "morreu mesmo?" Não precisa ser médico para isso. Sim, não tinha mais jeito.

Etienne nasceu de uma mãe de 14 anos em 1909. Aos 25 anos, sua mãe morreu de tuberculose, deixando com 4 filhas e o marido. Pouco depois, ele se casou novamente. Dona Violeta foi mãe de mais três, além de assumir as primeiras filhas do marido. Foi avó da minha avó, bisavó da minha mãe. Mas eu não a conheci, morreu pouco antes de eu nascer. Etienne teve cinco filhos, perdeu dois ainda pequenos, e mais Anita, filha de criação; seis netos, sete bisnetos e um trineto.

À noite, choveu pela primeira vez em três semanas, mais que havia chovido em todo o resto do mês. Era o tanto de gente lá em cima que chorava de saudade. A chuva, eu senti, era salgada.

3 Comments:

At 2:07 AM, Anonymous Anônimo said...

Adorei Plha. Beijo solidário

 
At 9:46 AM, Anonymous Anônimo said...

Phla, não me considero um cara religioso: bem ao contrário, aliás. Mas gosto, por conforto pessoal, de pensar que os que se foram estão num lugar melhor. Talvez numa grande biblioteca, meu paraíso pessoal. Grande abraço.

 
At 5:40 PM, Anonymous Anônimo said...

Olá. Cheguei ao teu blog através do Kayuá. Gostei. Voltarei mais vezes. Até...

 

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