Histórias de motorista
Da série "Crônicas inesquecíveis já quase esquecidas", que arrisca começar hoje e terminar hoje mesmo, ressuscito duas histórias de motorista, uma espécie de versão urbana das histórias de pescador, mas que, eu juro, aconteceram bem assim como eu conto.
Perdido na Selva
Hoje foi um dia complicado: estive cego por um instante, e pior, dirigindo. Estava na Av. Maracanã quando tudo aconteceu. O casaco contrastava com o tempo quente, e por isso resolvi tirá-lo. Parei em um sinal, em frente à Praça Varnhagen, e o tirei. Percebi que o movimento removera os óculos do meu rosto, e depois ainda ouvi um estalido de algo batendo no asfalto, mas não me havia ligado para o fato. O sinal abriu, e somente então me percebi cego. Afinal, dirigir com -6,5 dioptrias no olho e -5,25 no esquerdo não parece fácil. Bom, o sinal abriu e eu tive que andar. Estava na faixa da extrema esquerda, ao lado do canal, e não podia estacionar. Aos poucos fui tomando a direita para virar em alguma rua onde pudesse parar, e só consegui em frente ao Tijuca Shopping, um quarteirão adiante.
Voltei correndo para o sinal onde meus óculos se suicidaram para fora do carro, mas não os encontrei. Perguntei ao vendedor de morango, ao malabarista de bolas de tênis, mas eles nada tinham visto. Um até comentou: "eu sei o que é isso, meu filho tem 16 graus", ao que eu respondi que aquele par não lhe serviria de nada, porque eu "só" tenho 6... mas ele não falou de mal, duvido que tivesse pego.
De volta ao carro, liguei para a minha mãe, ela sempre tem alguma brilhante idéia. Falou com o Mauro, ex-marido dela, que tem uma farmácia logo ali na Praça Saens Peña, e ele foi me buscar. Com ele conduzindo meu carro, fomos até a óptica de um conhecido, o que me salvou o resto do dia. Com o atendimento oftalmológico de emergência - nunca achei que exame de refração pudesse ter alguma urgência - pelo técnico da óptica, comprei um par de caixas de lentes de contato descartáveis compatível com a minha necessidade visual.
Apesar de a vida útil teórica de cada par dessas lentes descartáveis ser de 1 mês, o meu organismo rejeita de alguma forma esse corpo estranho corneano, e a lente já começou a se embaçar. Espero que sobreviva à primeira lavagem, e que amanhã já esteja novamente 100% para que eu possa ir à faculdade, atender meus pacientes, e ainda ir a uma festa à noite.
***
CRASH! BOOM! BANG!
Bananas e maçãs não devem se sentir muito confortáveis dentro de um liquidificador. Gosto muito de vitamina, mas esse pensamento não me sai da cabeça desde que eu me passei por uma experiência provavelmente não muito diferente da que elas passam no eletrodoméstico. Uma diferença fundamental: eu não saí triturado. Por pouco.
É de se estranhar que não haja mais acidentes na Avenida da Américas. Quem se dispuser a passar meia hora parado, contando os carros que avançam o sinal fechado, há de não ter mais dedos já no segundo vermelho. Nem a clássica paradinha eles dão; seguem como se ninguém precisasse fazer o retorno. Pois dessa vez foi comigo.
Eu vinha da casa da minha namorada, a não mais de 4 quilômetros do meu condomínio. Estava a um minuto de casa quando as paredes do meu mundo pareceram se fechar. Não chegou a tanto: era só a porta do carro que abaulava para dentro. Um Fiorino veio a toda velocidade, pé embaixo, desreipeitando não só o sinal fechado como o limite de 60 km/h e bateu com violência contra a dianteira direita do meu Peugeot. Mas até então eu só sabia que não chegaria em casa tão cedo quanto imaginava.
- Cadê meus óculos?
Eu estava cego. Seis graus de miopia fazem alguma diferença, pode acreditar. Em algum lugar jazia meus óculos, mas como encontrá-los sem eles? É para evitar esse tipo de situação que eu sempre os ponho no mesmo lugar na hora de dormir. Um pouco para lá ou para cá e eu tenho que me virar com o tato para achá-los.
Saí do carro. Eu estava em posição perigosa, faixa central de uma avenida de alta velocidade - deveria ter um máximo de 60 km/h, mas tudo bem - e eu sem enxergar quem vinha ou ia. Uma senhora simpática - não saberia descrevê-la - parou ao meu lado. Ela tinha visto tudo, estava parada no sinal quando tudo aconteceu. Sabia, portanto, mais que eu.
- Que maluco! Ele avançou o sinal em cima de você!
- Ele esta aí? Fugiu?
- De onde ele está não foge. Veja!
- Não estou vendo nada! Meus óculos caíram em algum lugar.
Foi só pôr as mãos no tapete do carona para ter meus olhos de volta. Só então eu vi o estrago: a lateral direita estava toda amassada e a dianteira já não existia. Óleo na pista, e por sorte o tanque de combustível não abriu, porque estava tudo destruído em volta da portinhola. Não acreditei que eu estava andando depois de ter sofrido um acidente com tanta força.
A Fiorino estava emborcada na grade de um parquinho. Domingo à noite, nenhuma criança brincava ali. Ainda que fosse dia, não me lembro de já ter visto alguém ali... O motorista, desolado, dizia não saber o que aconteceu.
- Não vi o sinal. Estava saindo dos carros que faziam o retorno, e quando dei por mim, estava na sua direção. não deu tempo de frear. Tentei desviar, e tudo que consegui foi evitar bater na sua porta. O estrago teria sido maior.
Outros tantos apareceram para ajudar. Estavam jantando no japonês ou na pizzaria, não sei, mas correram ao ouvir o estrondo da batida. Surgiu até uma máquina fotográfica digital, de uma senhora que dizia Ter vindo de uma festa infantil, e agora se dispunha a me ajudar. As fotos poderiam servir mais tarde como prova.
Dispensável dizer que eu tremia. Nunca foi tão difícil usar o celular, as teclas pareciam menores que nunca. Discava um, saía outro, nem sempre vizinho. Minha mãe não atendeu. Tentei minha namorada. Sim, alguém para me ajudar. Amor, bati com o carro, vem para cá. E só depois consegui falar com a minha mãe, pelo telefone do namorado dela. Já estavam pagando a conta do restaurante e vinham me encontrar. Disquei 190, plantão da polícia, e aquela musiquinha insuportável de espera, tanto mais insuportável quanto maior a espera.
- Polícia Civil, boa noite, em que posso ajudar?
Enquanto eu lhe explicava o que tinha acontecido, encostou uma viatura. Agradeci ao rapaz e fui receber o policial. Carregava um fuzil nas mãos, não bem para que frente àquela situação.
- Tem algum ferido?, ele perguntou.
- Não, eu e ele estamos bem.
Chegaram também os Bombeiros e perguntaram de novo a mesma coisa. Tudo ok. Isolaram a área com cones, pois até então o carro estava no meio da pista e a cada sinal aberto um novo acidente se insinuava. E de alguma forma, não sei bem com que força, conseguiram remover no braço o carro do lugar e encostá-lo ao meio-fio.
Os policiais preparavam o Boletim de Ocorrência, os Bombeiros trabalhavam ao seu modo, e as pessoas se aglomeravam. Minha família, amigos do meu irmão, minha namorada e o pai... até o meu pediatra apareceu por ali.
Depois de liberado, ainda fui para o Lourenço Jorge, um amigo estava de plantão na Ortopedia. Nada de mais: uma entorse de joelho, e contraturas musculares por aqui e ali.
São e salvo, voltei para casa. A vida continua. E os motoristas continuam a avançar o sinal vermelho.
2 Comments:
Phla,
Diga-me que é ficção...por favor! Eu tb tenho seis graus de miopia, não me imagino andando dentro de casa sem os óculos ou lentes, quanto a dirigir...ainda que seja um quarteirão. Loucura, deve ser ficção.
Fou!
Aprendi muito
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