Comida para quem precisa de comida
Por muitos e muitos anos, séculos, milênios, o Homo sapiens evoluiu em seu ambiente natural, a savana africana. À mercê de predadores e da disponibilidade de caça e coleta, sobreviveram os espécimes mais capazes de poupar a energia acumulada em épocas de fartura para não perecerem nos momentos de carência. Cada migalha era importante, e o desperdício se apresentava como um atentado à manutenção da espécie. Bem como todos os outros animais, incapazes de multiplicar o alimento com a criação, o cultivo e o processamento.
Em um momento da História, o ser humano aprendeu a plantar e domesticou animais, que passaram a lhe servir como alimento, transporte, companhia, proteção, entre outras funções. Isso mudou radicalmente o mundo, transformando no que hoje conhecemos como civilização. Com o passar do tempo, ecossistemas inteiros deram lugar a cidades, num tempo em que ainda não se falava tanto de Ecologia, da proteção à biodiversidade.
Assim como o ser humano, outros animais também precisam procurar pelo alimento, seja caçado ou coletado. Com o meio a que pertenciam ocupado por metrópoles, a eles se apresentaram duas possibilidades: algumas espécies foram extintas, ou estão próximas disso; outras conseguiram se adaptar seus hábitos à vida no asfalto.
Isso é o que se vê em "Os Sem-Floresta" ("Over the Hedge", 2006), animação de Tim Johnson e Karey Kirkpatrick. A floresta em que viviam os animais-personagens é transformada em condomínio de luxo enquanto hibernavam, deixando-os numa minúscula porção de terra, sem condições de conseguirem alimento suficiente. A chegada do guaxinim R.J. traz novas esperanças com a introdução de um mundo a que eles não tinham acesso: a fartura dos humanos. Seu objetivo principal é pagar as contas com o urso de quem tentou roubar a comida, mas acaba se afeiçoando à "nova família".
Impressionante como qualquer ser humano se reconhece na cena em que R.J. apresenta a abundância de comida aos outros animais. "Nós comemos para viver; esses caras vivem para comer!"
O filme acaba se tornando uma faca de dois gumes. As pessoas mais esclarecidas conseguem ver a ironia no discurso do guaxinim; entendem que eles precisam invadir o espaço do homem porque o meio ambiente lhes foi retirado, e com ele toda a comida de que dispunham. Como eles, isso também acontece na vida real, quando as raposas vermelhas (de pêlo, não de comunistas) são encontradas em Londres, ou os coiotes nas cidades do meio oeste americano. Mas também, por outro lado, pode ser visto como uma justificativa à comilança, tirando toda a conotação de ironia dos diálogos. E eu não me espantaria nada se soubesse que nos Estados Unidos prevalece essa segunda visão.
Os norte-americanos formam a nação mais rica do planeta, apenas porque os seres humanos são capazes de pensar e comer ao mesmo tempo. Se eles tivessem de escolher, sem dúvida seria pela segunda opção. Isso mostra claramente o documentário "Super Size Me", em que o diretor Morgan Spurlock sofreu as conseqüências de passar um mês - só um mês! - comendo nada além de McDonald's. Em trinta dias, ganhou 15 kg, aumentou os níveis de glicose, colesterol e enzimas do fígado. Os médicos que o acompanhavam julgaram-no louco de prosseguir com o "trabalho" a partir da segunda semana.
Mas o Mc Donald's não é o único culpado de todos os males alimentares do planeta. O ser humano tem preferência por alimentos com alta densidade calórica, muito doces ou muito gordurosos, ou os dois, porque precisou sobreviver a períodos prolongados de fome na savana africana. Mas depois disso a espécie desenvolveu uma consciência capaz de combater esse instinto suicida. Vários hormônios sinalizam que a comida está chegando ao estômago, mas o mais importante na hora de parar de comer é saber que o excesso de alguma forma pode fazer mal.
E por "fazer mal" não se estende apenas ficar gordo e esteticamente inapropriado para uma sociedade que prima pela magreza; não, "fazer mal" inclui também hipertensão, diabetes, colesterol alto, doenças cardiovasculares como o infarto do miocárdio, acidentes vasculares cerebrais, doenças arteriais periféricas, impotência sexual, etc. Às vezes precisa chegar na impotência para alguém tomar vergonha na cara e parar de comer o que não deve. É onde o problema bate mais fundo na consciência dos homens.
Algumas informações precisam ser dadas à população, e o momento mais adequado parece ser o intervalo comercial da novela das oito. Há quem não veja Jornal Nacional, Globo Repórter, quem não tenha GNT ou Globonews, quem não acesse a internet. Mas não tem quem não veja a novela das oito, por pior que ela seja. Então, se é importante, que se divulgue em seus intervalos comerciais e todos ficarão sabendo.
Em primeiro lugar, que hipertensão, diabetes e colesterol alto não doem. Geralmente o diagnóstico é feito por acaso, em exames de rotina, em pré-operatórios, etc. E quando dói, sai de baixo (referência escondida à Claudia Gimenez): já pode ser um infarto.
Em segundo lugar, que o melhor e mais eficaz tratamento para essas doenças é a perda de peso. E não têm remédio melhor e mais eficaz que uma boa alimentação e uma prática regular de atividade física. Remédios para perder peso só adiantam no período em que se está usando, e um dia vai precisar parar. Dietas radicais idem.
Imagino que uma campanha publicitária bem feita, tão apelativa quanto as propagandas de fast-foods, bebidas e cigarros, vá me tirar alguns pacientes, já que muitos serão capazes de perder peso por conta própria. Quase todos são, só precisam começar a mudar o estilo de vida. Mas ainda assim eu ficaria muito feliz de ver a saúde do povo melhorar antes que se precisa tratar das doenças.
Comamos para viver; não vivamos para comer!
Imagem: La Siesta, Fernando Botero
3 Comments:
Putz... e minha pizza?
Beleza de cronica, Phla. Da vontade de imprimir, emoldurar e pendurar na parede do consultorio, ao lado dos outros quadros de Botero (quem nao os tem?...rs). Abraco!
PS - Super Size Me passa hoje (25/07) na HBO.
Grande sacada, uma matéria de peso.
Abraço
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