terça-feira, agosto 08, 2006

Quadrinhos também são literatura



Maus, Art Spiegelman, Ed. Brasiliense, 1994/95

Art Spiegelman é um típico judeu nova-iorquino, como outros tantos, natural da cidade mais hebraica fora de Israel. Ele faz parte da primeira geração de judeus americanos após o holocausto da Segunda Guerra Mundial. Filho de Anja e Vladek Spiegelman, sobreviventes de Auschwitz, perdeu o irmão Richieu e grande parte de sua família nos porões nazistas.

Art cresceu e se transformou em um dos expoentes do cartoon, mídia inicialmente maldita, e mais bem aceita a partir dos anos 70. Ele participou ativamente, como desenhista da New Yorker, do processo de acreditação desse novo formato de arte.

De cartunista a autor de histórias em quadrinho foi um passo. Se os livros HQ geralmente têm um roteirista e um ilustrador, Art Spiegelman, pelo contrário, faz as vezes dos dois papéis, escrevendo as próprias histórias que desenha.

Maus conta o drama de sua família na Czestochowa, Polônia, das décadas de 30 e 40, frente ao crescimento do nazismo e a subseqüente invasão alemã. A história geral da Segunda Guerra é bem conhecida do grande público, principalmente devido à enorme freqüência do tema no cinema. "O resgate do soldado Ryan", "A lista de Schindler", "A vida é bela", para ficar entre os recentes. Um acontecimento desse porte é palco para muitos personagens intensos com suas histórias únicas de sobrevivência e morte. Não é diferente no caso dos Spiegelmans.

Se o assunto é já é um velho conhecido, o mesmo não se pode dizer da forma utilizada. Não apenas pelo fato de se tratar de uma HQ. Art Spiegelman cria uma fábula, transformando as várias nacionalidades em espécies diferentes de animais, que simbolizam a situação em que aquelas pessoas se encontram. Os judeus, por exemplo, subjugados pelo poderio bélico nazista, são os ratos do título ("maus", em alemão, quer dizer rato); os aliados de Hitler são gatos, inimigos mortais dos ratos; e os norte-americanos são cachorros; os poloneses não-judeus são porcos, por terem compactuado silenciosamente com a eliminação dos judeus; e daí por diante. Mais ou menos como se vê (escrito, e não desenhado) em "A revolução dos bichos", de George Orwell, analogia rural da Revolução Russa de 1917.

Outro aspecto que mostra a criatividade da obra é a forma metalingüística com que Art aborda a história. O livro começa no tempo presente (1973), quando ele conta como nasceu a idéia de biografar sua família em HQ, como surgiram as espécies animais em representação dos personagens, como se passaram as entrevistas com seu pai... No início do livro II, Art e sua namorada Françoise discutem qual bicho ela vai ser, uma francesa convertida ao Judaísmo. Ele aproveita o trocadilho e sugere uma sapa, já que os americanos, por influência da implicância britânica, chamam os franceses de "froggies". Todo o tempo ele alterna a história propriamente dita, de seus pais na guerra, e o contar a história, inventando metáforas e entrevistando Vladek.

Em 1998 Art Spiegelman veio ao Rio de Janeiro para uma conferência no Centro Cltural Banco do Brasil. E lá estava eu, os dois volumes de Maus em mãos, ao lado do Ed Motta, escutando o homem falar do seu livro. Saí com um autógrafo em cada um, e um desenho especial, feito à mão, na folha de cada livro. Além de um ótimo autor, é uma figura muito simpática, inseparável do cigarro e de seu filho Dashiel (que hoje deve ter uns 15 anos).