sábado, setembro 09, 2006

Homenagem ao taxista desconhecido

Há uns seis meses eu venho lendo Dom Quixote, clássico de Miguel de Cervantes, e por pouco, muito pouco, a leitura não precisou ser interrompida antes do fim por motivo de força maior. O livro é enorme, 604 páginas com letra miúda e diagramação ocupando a página inteira. A tradução antiga manteve o estilo rebuscado, difícil, do escritor espanhol, mas vale a pena cada página vencida a ferro e fogo. E eu sentiria uma derrota muito intensa on meu coração se não conseguisse terminá-lo.

Cheguei no Recife à meia-noite e meia, mais de uma hora depois do horário previsto - o vôo atrasou para sair do Rio. Peguei um taxi comum, e em dez minutos já estava à porta do albergue. Desembarquei - vício de linguagem, afinal não estava em nenhum barco -, peguei minha mala e me instalei.

Só no dia seguinte eu dei por falta da mochila em que tinha guardado a eventura do Caveleiro da Triste Figura, além da Exortação aos Crocodilos, do português António Lobo Antunes, o próximo da fila, de carona para o caso (improvável) de eu conseguir terminar o Dom Quixote.

A mochila ficou no táxi, e agora?

Perguntei à dona do albergue se não teria um telefone que eu pudesse ligar, se eles não passariam rádio entre si... Não sei.

Cogitei ir à polícia saber se não teria um jeito... Mas eu não tinha o nome do motorista, o carro, empresa... E eu precisaria ir cedo pela manhã ao Centro de Convenções para me inscrever no congresso.

Perguntei a um taxista na rua, ele não pareceu entender o meu problema.

Por fim, dei os livros por perdidos. Se pelo menos o motorista aproveitasse para ler, se aumentasse a cultura de alguém, não teria sido em vão. E imaginei ver um dia no Fantástico ou Globo Repórter a história de um taxista que se apaixonou pela literatura depois de encontrar dois livros o banco traseiro de seu carro. Talvez ele se esforçasse para montar uma biblioteca pública para difundir sua nova paixão pela vizinhança, mudando o status cultural da periferia de Recife.

Fim do primeiro dia de congresso, voltei para o albergue. E no quarto estava, que surpresa, me esperando o dia inteiro, minha mochila e os dois livros dentro. É a demostração mais óbvia e evidente de que existe ainda gente boa no mundo.

2 Comments:

At 2:25 AM, Anonymous Anônimo said...

Baita milagre heim nego? Vao ver que p taxista era analfabeto.

 
At 2:18 PM, Blogger Helena said...

Que beleza, viva o nobre povo pernambucano da minhas origens hehe

Muito interessante e inteligente seu blog. Fiquei feliz de voltar a visitar.

beijos e parabéns pelo novo título,

Mhelionese

 

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