sábado, dezembro 02, 2006

Essa página exibida

– Onde já se viu uma Página assim tão exibida! – exclamou o Ponto de Exclamação.

O esquálido rapaz tinha razão: a Página, de uma hora para outra, ganhou beijos fosforescentes do Marca-texto, e vinha mostrando a nova cor a quem aparecesse.

– Logo aparece alguém mal intencionado e... – as Reticências, trigêmeas univitelinas, deixaram a conclusão para o bom entendedor.

Não se pode falar em coincidência quando os acontecimentos convergem para um desfecho inevitável. A Tesoura, criatura invejosa, não conseguiu se segurar e partiu para a agressividade. Um certo Ponto de Interrogação tentou se interpor, perguntando por quê, por quê, mas sua tentativa foi em vão. Em poucos instantes a Página estava em pedacinhos.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Um trio ao molho madeira

- Eu e Rodrigo vamos a uma apresentação de choro no Teatro Nelson Rodrigues; você quer ir?

Era sexta-feira à tarde, o show seria à noite. Tive que me decidir rápido. O pior foi esperar pela decisão da Sabrina. Não sabia se ia, se ficava, e o relógio não estava ajudando. Acabou não indo. Eu já estava a mais de meio caminho: de São Cristóvão à Lapa é um passinho.

Fui, e depois fiquei pensando o que teria sido de mim se não tivesse ido. Eu não seria ma mesma pessoa. Alguma coisa mexeu com as minhas entranhas durante aquela apresentação. Mas comecemos pelo começo.

O show não era de um grupo qualquer: o Trio Madeira Brasil é formado por Ronaldo do Bandolim (dizer em que instrumento chega a ser pleonasmo); Marcello Gonçalves, no violão de sete cordas; e Zé Paulo Becker, no violão, e em duas músicas uma viola caipira.

Como falar da qualidade dos músicos a quem nunca os ouviu?
A melhor forma é dizer: OUÇA!

Para que um trio se aventure a tocar Jacob do Bandolim, Egberto Gismonti, Chico Buarque, Edu Lobo, Ernesto Nazareth, e estrangeiros como Manuel de Falla e Astor Piazzola, têm de ter muito giz no taco. E isso só se adquire com muito estudo e muita hora de vôo. Zé Paulo é mestre em Música pela UFRJ; Marcello, formado em Música pela Uni-Rio; e Ronaldo, o decano, membro há vinte anos do conjunto Época de Ouro, mais tradicional grupo de choro em atividade.

Não pude deixar de levar para casa uma parte do show, sob a forma do primeiro disco do trio, epônimo. "Trio Madeira Brasil" é uma breve demonstração do que os três são capazes, e um convite para o próximo disco, a ser lançado tão cedo eles consigam se juntar em estúdio novamente. Palavras deles próprios, que dizem já ter inclusive escolhido o repertório.

É só esperar!

Perto do limite

Odeio quando meu telefone celular toca durante uma consulta. Sempre fico na dúvida sobre se atendo ou não. Depende: ligação de gente conhecida eu deixo tocar e ligo mais tarde; número desconhecido eu geralmente atendo, para saber quem é, e digo logo que estou em consulta e não posso falar.

Odeio quando meu telefone celular toca... mas sábado foi diferente.

Eu estava atendendo uma moça, acompanhada pela filha de oito anos, quando alguém me ligou. Era meu pai. Pedi licença, falei rapidinho. Quando desliguei, a menina disse:

- Que música legal!
- Eu sei que conheço de algum lugar - respondeu a mãe - mas não sei dizer de onde.

O toque do meu telefone é a introdução de "Close to the Edge", do Yes, grupo inglês de rock progressivo. Expliquei isso para as duas.

- Hmmm... sabia! Meu marido adora Yes. Ele escuta isso o dia inteiro.
- É muito bom mesmo! - concluiu a filha.

***

Quem disse que o povo se contenta com pão e circo? Só se for o Cirque de Soleil! Música é mais que diversão, é prazer, e até uma criaturinha de oito anos, com a personalidade ainda em desenvolvimento, já é capaz de perceber a diferença entre Yes e uma bandinha fundo de quintal. Não eram ricos, não eram velhos, não eram nada diferentes de qualquer outro senão no gosto da música pela qualidade, e não pela festa, ou por aparecer no Faustão.

sexta-feira, setembro 22, 2006

What if God...

Weird Al Yankovitch é um comediante americano que fez várias sátiras a músicas pop, bem ao molde dos Casseta e Planeta. Uma de suas canções é "What if Gof smoked cannabis", versão politicamente incorreta de "What if god was one of us", de Joan Osbourne.

Puxando a pergunta para o lado biológico, por que a maconha faz o efeito que faz no ser humano?
A cocaína é um análogo das catecolaminas; o LSD é um ácido que atrapalha quimicamente as conexões neurais; até da heroína nós temos uma versão endógena, responsável por atenuar a nossa dor. Mas e a maconha?

Curiosamente, foi identificado no cérebro um receptor canabinóide. Ora, existe uma proteína capaz de reconhecer o princípio ativo da maconha? Para quê? É uma tentação que o Diabo inseriu no nosso código genético, a maçã dos nossos dias?

Não.

Um dos efeitos mais conhecidos da maconha é a famosa "larica", fome excessiva pouco tempo depois do uso. A partir dessa informação, cientistas descobriram que um subtipo do receptor canabinóide é responsável pela sinalização da fome para o hipotálamo. Não tardou que surgisse o primeiro remédio a funcionar em cima dessa nova fisiologia: o Rimonabant, inibidor do receptor canabinóide tipo 1, é a nova promessa para o tratamento da obesidade, e deve chegar ao Brasil no início do ano que vem.

Se a maconha não foi liberada para tratar glaucoma - e nem deve ser, já que tantos outros remédios existem com essa mesma finalidade -, pelo menos seus efeitos ajudaram a progredir o estudo da obesidade, doença mais prevalente nesse mundo glutão em que vivemos.

sábado, setembro 16, 2006

Criaturas da Noite

Era uma vez um cara, um qualquer, que depois de beber muito, muito mesmo, virou O cara. Ele é louro, cabelo comprido ultrapassando por pouco a altura dos ombros, escorrido como um pós-chapinha (mas eu imagino que o dele seja assim mesmo por natureza). Ele é extremamente magro, e provavelmente perdeu bastante peso nos últimos tempos, porque a cintura está incapaz de segurar o jeans.

O cara leva um carrinho modificado para sua atividade de DJ ambulante e vendedor de CDs piratas. Um rádio de carro, auto-falantes potentes e uma coleção de discos pendurados na prateleira, aqui, ali, acolá.

Estávamos num bar, eu, Edward, paulista de Caraguatatuba, o gaúcho Helton e o alemão Sören, quando o cara chegou. Abordou uma mesa, deve ter perguntado que música eles queriam ouvir, voltou para o carrinho e deixou rolar um forró desancado de letras chulas. Foi à segunda mesa, bateu um papo com os freqüentadores do bar, e quando mudou a famigerada música (antes do forró terminar, felizmente), começou a tocar, surpresa méxima, "Rock n' Roll", do Led Zeppelin. Tinha pirataria para todo gosto, e essa foi uma ilha de qualidade no meio de um monte de bizarrice.

Até que uns rapazes da mesa ao lado, já com os cornos cheios de Red Label (a garrafa já estava abaixo da metade), resoloveram partir para a ignorância. O cara tentou contemporizar, mas discussão de meia dúzia de bêbados contra um bêbado só, independente de quem bebeu mais, é covardia.

Dançando uma ciranda em Itamaracá

A chuva de hoje não é a mesma chuva de amanhã. m Recife venta tanto, e esses dias, superaram de longe a média - é verdade, em Olinda caíram postes, casas foram destelhadas e a maré invadiu ruas -, que a nuvem cinza da noite já vai estar longe pela manhã.

Na Semana Santa de 2003 eu fui ao Recifee tirei o último dia para visitar a Ilha de Itamaracá. E depois de um congresso ensolarado, a segunda-feira amanheceu nublada e evoluiu logo para um dilúvio de proporções bíblicas. A excursão já tinha andado 100km, nós estávamos diante de um paraíso escondido atrás de uma cortina de água e eletricidade.

Dessa vez a maldição esteve perto de se cumprir. Eu nunca conheceria realmente as belezas de Itamaracá. No dia e que o congresso acabou, como m[ágica o céu se fechou e nuvens cinza. Chuviscou, mas prometia mais. Durmi pensando no que faria se o domingo estivesse feio. Mas, como eu disse no início, a chuva de hoje não é a chuva de amanhã, e no domingo nasceu um sol maior que de todos os outros dias.

Era nove horas da manhã quando partimos do albergue. Eu, o brasiliense Marcos e o alemão Sören. Um, doi, três ônibus depois, uma kombi pré-histórica que o dono recuperou do ferro-velho, e eis que 2h30 depois já estávamos na Praia do Forte.

A kombi, ou ainda, o leilão de seres humanos que precisam se deslocar de um lado a outro, merece um parênetese. Fomos os primeiros a entrar, e no mesmo ponto mais três. A cada possível passageiro o kombeiro punha meio corpo para fora e gritava "Ilha de Itamaracá dois real!" Mais um casal, e uma família, crianças... já se contavam dez pessoas dentro da kombi e o camarada continuava tentando botar mais gente. A lotação absoluta veio quando ele viu duas meninas e julgou que elas estariam interessadas no transporte coletivo. Gritou que o motorista parasse, o que só aconteceu a umas duas centenas de metro à frente. Voltando de ré no meio da auto-estrada, chamou as garotas, que realmente aceitaram o desafio. Dois rapazes cederam seus lugares para as duas, e foram se sentar dentro do porta-malas. E com algo perto de quinze pessoas chegamos ao ponto final.

Voltando, então... o Forte Orange, que dá nome à praia em que estávamos, é uma construção holandesa do século XVII, tempo em que Maurício de Nassau tomou essa porção de terra para o Reino dos Países Baixos. Com a retomada de Pernambuco, o forte foi destruído e refeito à moda dos portugueses. Ultimamente, um consórcio entre instituições brasileiras e holandesas organizou uma linha de pesquisas no local, transformando o forte em sítio arqueológico.

Outra atração da ilha é o Projeto Peixe-Boi Marinho, responsável pelo estudo e proteção do mamífero aquático. O projeto tem filiais em todos os estados litorâneos da Bahia ao Amapá, e na sede em Itamaracá, onde tudo começou, hoje funciona um parque aberto a visitação de turistas. No cinema, em forma de peixe-boi gigante, em concreto, cujo teto, por dentro, imita a coluna vertebral e as costelas, passam vídeos institucionais sobre a ecologia do mamífero mais ameaçado de extinção. Mas a maior atração mesmo são os tanques, em que os bichos bobalhões podem ser vistos de perto.

Definitivamente a Ilha de Itamaracá vale uma visita em dia de sol. Acontece que nós não éramos os únicos a achar isso. Só tivemos õção de quantas pessoas tinham tido a mesma idéia ao tentarmos voltar. A fila no terminal rodoviário ia e vinha, ia e vinha, saía da praça e dava meia volta no quarteirão. Seis ônibus sanfona saíram lotados antes de chegar a nossa vez de entrar. Três integrações e duas horas depois, estávamos de volta no albergue, sãoe e salvos. E mortos de cansaço.

Se para mim foi uma guerra, imagino o que não foi para o alemão. Ele olhava para tudo como uma grande novidade. Mas ele ficou mesmo espantado, e pelo lado bom, com a civilidade e paciência com que todos esperavam na fila do terminal. Realmente incrível!

Título retirado da letra de "Leão do Norte", do Quinteto Violado

Como nossos pais

"Isso não é música, é barulho!"

A frase está escrita na página 47 do "Manual para Novos Pais"; mas pais de verdade não precisam de manual para saberem que a música que seus filhos escutam não passa de barulho. Antes de qualquer tentativa de escutá-la.

Ou eu sou muito exigente, ou já está na hora de eu mudar de lado, de filho para pai. Ou os dois, que não são mutuamente excludentes.

Eu tenho uma tendência a preferir músicas que a maioria acaba não gostando. Não por implicância, porque às vezes eu gosto ou não antes de saber a opinião dos outros. Foi o caso, por exemplo, da apresentação do Alceu Valença na festa do 23º Congresso Brasileiro de Endocrinoliogia e Metabologia, em Recife.

Toca iso, toca aquilo, o povo pede. Ele toa o que quiser, ele que é o artista, deixa fazer como sabe. E apesar de Alceu não tocar músicas tão conhecidas, são todas muito boas. Umas mais lentas, o que desagradou a parte do público que queria dançar forró.; outras mais obscuras, o que desagradou a parte do público que queria acompanhar as letras. Mas se, em vez de se decepionar com o que ele deixou de tocar, o povo se preocupasse mais em prestar atenção ao que ele de fato tocou, sairiam tão agraciados quanto eu.

- Você está feliz porque passou na prova!
- Você já está com a cabeça cheia de whisky!

Os dois eram verdade, mas Alceu não precisa de prova de título ou whisky a go go para eu gostar. É bom, muito bom, e isso basta. Ainda que ele não teha tocado a "Embolada do Tempo".

Frase do dia

Num terminal rodoviário, no interior de Pernambuco - mais especificamente na volta de um belo passeio pela Ilha de Itamaracá:

- Cadê o cobrador?
- Deve estar passando mal do currículo.

***

Ah, deve... ou não seria cobrador! Eu me pergunto o que o rapaz à minha frente quis dizer com isso. Não, melhor não pensar muito.

"A cidade é suja"

No banheiro do Hospital de Clínicas Dr. Aloan se lê uma breve inscrição colada na parede: "O lugar mais limpo não é o que mais se limpa, mas sim o que menos se suja". Não podia ser mais correto. A limpeza tem um equilíbrio frágil, e qualquer alteração no meio pode ser fatal, gerando sujeira num padrão de feedback positivo. Se, em sujando, você limpar logo, o próximo vai se sentir obrigado a fazer o mesmo; mas, por outro lado, tendo encontrado um ambiente sujo, quem terá pena de deixá-lo um pouco mais sujo.

Analisemos, então, a frase-título: como compreendê-la?
"A cidade" - sujeito; "é" - verbo de ligação; "suja" - predicativo do sujeito.

Segundo essa análise sintática, no entanto, a culpa semântica da sujeira recai sobre a cidade, enquanto na verdade ela é apenas uma vítima.

Lembremos, então, que "suja" é não somente um adjetivo, mas também a forma irregular do particípio do verbo "sujar". Sob esse ponto de vista, cria-se a estrutura de uma oração na voz passiva, com o agente da passiva "pelos homens" oculto.

Assim é possível conjugar coerência sintática e semântica com a realidade: a cidade não é capaz de se sujar sozinha, e se há lixo nas ruas, e urina no chão dos banheiros, e poluição nos rios e mares, a culpa não é senão de seres humanos. Não diria porcos, porque nem os porcos são capazes de tanta destruição do meio ambiente.

sábado, setembro 09, 2006

Títulos

Ano passado conquistei o Título de Especialista em Endocrinologia e Metabologia (TEEM) no congresso de Aracaju.
Esse ano, conquistei o Certificado de Área de Atuação em Endocrinologia Pediátrica no congresso de Recife.

Para o alto, e avante!

(não reparem, estou na fase maníaca do meu distúrbio bipolar)

Homenagem ao taxista desconhecido

Há uns seis meses eu venho lendo Dom Quixote, clássico de Miguel de Cervantes, e por pouco, muito pouco, a leitura não precisou ser interrompida antes do fim por motivo de força maior. O livro é enorme, 604 páginas com letra miúda e diagramação ocupando a página inteira. A tradução antiga manteve o estilo rebuscado, difícil, do escritor espanhol, mas vale a pena cada página vencida a ferro e fogo. E eu sentiria uma derrota muito intensa on meu coração se não conseguisse terminá-lo.

Cheguei no Recife à meia-noite e meia, mais de uma hora depois do horário previsto - o vôo atrasou para sair do Rio. Peguei um taxi comum, e em dez minutos já estava à porta do albergue. Desembarquei - vício de linguagem, afinal não estava em nenhum barco -, peguei minha mala e me instalei.

Só no dia seguinte eu dei por falta da mochila em que tinha guardado a eventura do Caveleiro da Triste Figura, além da Exortação aos Crocodilos, do português António Lobo Antunes, o próximo da fila, de carona para o caso (improvável) de eu conseguir terminar o Dom Quixote.

A mochila ficou no táxi, e agora?

Perguntei à dona do albergue se não teria um telefone que eu pudesse ligar, se eles não passariam rádio entre si... Não sei.

Cogitei ir à polícia saber se não teria um jeito... Mas eu não tinha o nome do motorista, o carro, empresa... E eu precisaria ir cedo pela manhã ao Centro de Convenções para me inscrever no congresso.

Perguntei a um taxista na rua, ele não pareceu entender o meu problema.

Por fim, dei os livros por perdidos. Se pelo menos o motorista aproveitasse para ler, se aumentasse a cultura de alguém, não teria sido em vão. E imaginei ver um dia no Fantástico ou Globo Repórter a história de um taxista que se apaixonou pela literatura depois de encontrar dois livros o banco traseiro de seu carro. Talvez ele se esforçasse para montar uma biblioteca pública para difundir sua nova paixão pela vizinhança, mudando o status cultural da periferia de Recife.

Fim do primeiro dia de congresso, voltei para o albergue. E no quarto estava, que surpresa, me esperando o dia inteiro, minha mochila e os dois livros dentro. É a demostração mais óbvia e evidente de que existe ainda gente boa no mundo.

domingo, agosto 27, 2006

Medicina e Literatura

A quantidade de livros lidos é diretamente proporcional à qualidade da escrita, quanto a todos os aspectos de um bom texto. Não apenas do ponto de vista literário; qualquer texto, de um artigo científico a uma carta de amor. Vocabulário, gramática, formação de frases, estilo, tudo melhora significativamente com a leitura. A sociedade lê pouco, e isso não é um fenômeno atual ou tampouco brasileiro; a classe médica, portanto, como qualquer segmento da sociedade, é de pouca leitura, quanto tanto restringindo-se à literatura científica.

Chama-se epônimo uma doença, sinal ou sintoma, ou qualquer fenômeno clínico, que receba o nome do seu decobridor. Alguns médicos do passado têm seus nomes imortalizados em íncontáveis epônimos, como é o caso de Fuller Albright, endocrinologista americano da primeira metade do século XX, eminente etudioso do metabolismo ósseo. A ele é atribuído o descobrimento da osteodistrofia de Albright, da síndrome de McCune Albright, entre outros.

Em alguns casos, pelo menos três, que eu me lembre agora, o descobridor da doença preferiu prestar homenagem, não a si próprio, mas a personagens da literatura e obras clássicas que trataram do assunto antes que se tornasse um problema médico. É o caso da Síndrome de Pickwick, descrita inicialmente por Charles Dickens no romance "As Aventuras do Sr. Pickwick". A síndrome se caracteriza por obesidade e redução da ventilação pulmonar, provocando sonolência; exatamente como a brilhante descrição do assistente Sam Weller. Curioso que a doença ganha o nome do protagonista, enquanto o doente da história é na verdade seu empregado.

O Barão de Munchausen é outro personagem que, de tão literariamente complexo, não podia ficar restrito às prateleiras de livro. O Barão é, inclusive, mais famoso que seu autor, o alemão Gottfried August Bürger. O nobre contador de mentiras entrou para a Medicina sob a forma da síndrome de Munchausen, ou, traduzindo para o bom português, a criação de sinais e sintomas em pessoas normais a fim de enganar o médico. Esquentar o termômetro no fogo para fingir que tem febre, para dar um exemplo bem simples. Alguns pacientes podem ser submetidos a dezenas de cirurgias antes de diagosticar o problema.

O terceiro não faz referência a um personagem, mas ao título do livro. "CATCH 22" é uma sátira à Segunda Guerra Mundial escrita pelo norte-americano Joseph Heller nos hippies anos 60, denunciando a estupidez institucional das Forças Armadas. A expressão-título, que em português é traduzida como "Ardil 22", ganhou vida própria, passando a significar algo como "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come", uma sinuca de bico sem saída. No livro, John Yossariam, capitão da Aeronáutica de uma base na Itália, tenta desesperadamente voltar para casa. Mas é decretado o Ardil 22, lei de guerra que diz que só pode pedir baixa quem for louco; mas pedir baixa alegando insanidade é sinal de lucidez. O raciocínio entra num ciclo vicioso que impede qualquer tentativa de retorno. Pois na Medicina, CATCH 22 é um mnemônico da Síndrome de Di George, doença genética caracterizada por: Defeito Cardíaco; Anormalidades faciais; Hipoplasia de Timo, fenda palatina (Cleft palate); Hipocalcemia; e mutação no cromossomo 22.

Não é obrigação nenhuma saber quem foi Charles Dickens, Gottfried Bürger ou Joseph Heller; mas ajuda ma hora de não falar besteira, como quem tenta explicar quem foi Samuel Pickwick e nunca leu o livro, ou ouviu falar uma vez e repete para o resto da vida. Dos três, nunca li "As aventuras do Barão de Munchausen"; mas para quem tem preguiça de sentar uma, duas horas para ler, todos os três foram adaptados para o cinema. A obra de Dickens foi adaptada em 1952, e de todos é o mais difícil de encontrar. O alemão mentiroso já foi às telas cinco vezes, sendo a última pelo ex-Monty Python Terry Gillian, com elenco de estrelas incluindo Eric Idle, Uma Thurman, Ray Cooper, Robin Williams, entre outros. "Ardil 22" tornou-se clássico nos anos 70, trazendo também uma constelação, com Alan Arkin, Orson Wells, Art Garfunkel, Jon Voigt, Martin Sheen, e o diretor Mike Nichols em uma de suas primeiras obras.

segunda-feira, agosto 14, 2006

O poder da marca

Não sou publicitário, nunca tive vocação para o negócio. Mas na qualidade de público-alvo das propagandas, acho que minha opinião vale de alguma coisa. Afinal, é pensando em mim e em cada um de nós que as marcas são criadas e divulgadas.

O programa Marketeria passa às segundas-feiras na Rádio Paradiso FM. Uma vez, curioso, eu fiquei ouvindo. Geralmente mudo de estação quando passa alguma coisa que não música, mas dessa vez eu não mudei. E não me arrependi. Acho que cada um de nós, consumidores, deveríamos ter uma noção maior do processo que transforma produtos em marcas. Por que Omo e não Brilhante? Por que Bombril e não Assolan? O nosso carrinho de supermercado pode ser assunto de psicanálise, tanto quanto os sonhos. A resposta é: porque a Gessy Lever e a Bombril conseguiram associar a marca a uma sensação no consumidor, que vê o M amarelo do McDonald's e começa a salivar; que vê amortecedor de carro a cada Schnauser, e molho de tomate a cada elefante.

Você compra determinada marca porque: 1) funciona; 2) é o primeiro nome que vem a sua cabeça qando se fala em determinado produto. Não necessariamente nessa ordem.

E por que, então, você vota em determinado candidato? Você tem a ingênua ilusão de que a resposta não é exatamente a mesma? Política e marketing andam juntas desde o início dos tempos; a quantidade de votos é diretamente proporcional à qualidade da campanha, à capacidade de transmitir um nome ao eleitorado e associá-lo a uma gama de sensações, sobretudo esperança de um mundo melhor.

Todo veículo, parado ou andante, que carregue em si uma marca é, ali naquele momento, a imagem que um consumidor em potencial tem daquela marca. Por exemplo: um outdoor da Coca-Cola pichado com palavrões não está sujando apenas aquele espaço físico, o papel do cartaz, mas também a imagem da marca Coca-Cola. Agora, se o caminhão da Coca-Cola está na sua frente numa estrada de uma pista, e o motorista, andando devagar, abre espaço para você passar, foi uma atitude generosa do motorista, mas também um ponto a favor da marca Coca-Cola.

Pois, um exemplo de verdade, foi exatamente o que aconteceu comigo na volta de Teresópolis, ontem, dia dos Pais. O Fiat de campanha do candidato a deputado estadual Bernardo Rossi, do PMDB, com seu nome ocupando a totalidade de cada uma das janelas - imagino que o espelho retrovisor interno fosse objeto de decoração -, passou a muitos quilômetros por hora além do permitido, e quando chegou a um ponto mais congestionado, saiu cortando e costurando de uma faixa para outra, fechando os carros que vinham diminuindo a velocidade.

A marca Bernardo Rossi, por mais que eu já não fosse votar nele - e isso não interessa, porque outros ali bem podiam estar cogitando a possibilidade -, saiu bastante arranhada do incidente, por culpa de um motorista irresponsável que não desconhece a importância da sua função. O caro ficou inteiro.