domingo, abril 23, 2006

O feminino buárquico


Poucos eventos são capazes de me levar à Zona Sul. A espectativa de ouvir Chico Buarque, no entanto, seria capaz de me levar a bem mais longe. Não precisou, bastou Ipanema. O Bar do Zira, no terceiro andar da livraria Letras & Expressões, apresenta toda sexta-feira o espetáculo "Versos de Hollanda", encenação teatral, musical, de dança, declamações e artes plásticas - se bem que de artes plásticas, um artista que costuma pintar um quadro ao vivo durante a peça, nada se viu na noite da última sexta - com as letras de Chico Buarque como amálgama para os esquetes.

O show já começa do lado de fora.

- Esse espaço é muito improvisado - diz o faxineiro, à porta da sala - Não era pra ter dessas palhaçadas!

O desabafo impensado estaria aqui de uma forma ou de outra, talvez como "Frase do dia". Mais tarde se descobre que aquele "faxineiro" é ator e sua declaração já era fala do seu personagem, e que o improvisado e impensado já era o início do espetáculo. E antes que eu antecipe todo o show, digo só que não é o único ator inesperado. O seu vizinho de cadeira pode fazer parte da peça.

E tem de tudo. Do Chico romântico, o feminino e o masculino; de seus personagens, Lili Brown, Geny Zeppelin e o malandro; do político, do cronista e do trovador. O compositor de mil caras tem todas as suas vertentes representadas no palco de Ipanema.

De

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos
Bravos guerreiros de Atenas

Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar um carinho
De outras falenas

Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas, Helenas


a

Te perdôo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
Te perdôo
Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair


e muito mais.

Dentre o muito mais, eles encenam uma parte da peça "Gota d'água", versão de Chico para o clássico grego "Medéia", de Eurípedes, quando Joana (Medéia) tira satisfação com Jasão por tê-la abandonado. A resposta de Jasão pode ser lida no Rosebud. Maravilha!

quinta-feira, abril 20, 2006

Pôr-do-sol de Itapoã


Era um dia atípico de meados do inverno. Uns dizem julho, para outros agosto já chegara, e eram 7h da noite - se é que se podia chamar noite - quando o horizonte se encheu de sangue à despedida do sol.

Inaê estava na praia assistindo ao espetáculo. Fazia isso todo dia, mas não cansava de se maravilhar com a natureza à sua volta. Nascera ali, sua mãe dentro d’água, nem chorou. Aquelas areias a conheceram de dedo na boca, correndo peralta com seus primos. Mancharam-se mais tarde com a sua mocitude. Apresentou-lhes Apoena e aos seus pés entregou-se ao amor. Inaê fazia 15 anos, e seu único pedido fora que Tupã lhe concedesse um longo dia de sol, e que ele se pusesse no crepúsculo mais bonito que já se havia visto. Foi atendida.

A indiazinha não havia saído da praia o dia inteiro, e isso preocupava seus pais. Jequié, o guerreiro, pediu pela filha ao pajé, e ele lhe acalmou: o destino de Inaê estava traçado, não havia o que fazer e nem com que se inquietar.

Nem quando o sol se foi definitivamente Inaê voltou à sua oca. A pele queimava, mas não sentia dor. Pelo contrário, o calor aliviava o espírito com uma sensação comparável apenas com... não, aquilo era melhor que as histórias à beira da fogueira, que as noites ao lado de Apoena, que os chás do pajé em dias de celebração. Era indiscutivelmente a melhor sensação que Inaê já havia sentido em sua vida.

Viu sua pele aos poucos começar a cintilar luz branca. O brilho fugidio se intensificou com faiscas que lhe escapavam dos dedos. A luminosidade já se notava na tribo. Quando chegaram à praia, os Potiguares encontraram Inaê tornada sol em terra. Mal podiam olhá-la, temiam ficar cegos, mas notaram que a pele esturricava. Já não a reconheciam, inchada como um baiacu encurralado, emitindo luz do corpo antes moreno.

A menina, por sua vez, não tinha medo, e aceitava a metamorfose com naturalidade. Parecia conhecer o futuro que o pajé previra. Em nenhum momento sentiu-se mal, desconfortável com a situação. Nem quando os pés desprenderam do chão e se ergueram em direção ao céu. Jequié chorava sem saber o que pensar, mas a filha subia com ar de regozijo no rosto dismorfo. Apoena o abraçava.

Naquela noite nenhum Potiguar dormiu. Toda a tribo se reuniu na praia para, acenando ao céu, se despedirem de Inaê, que, branca e redonda, os observava lá de cima. Mal sabiam que ela voltaria toda noite para lhes velar o sono, depois que o sol, seu amante, se vai.

quarta-feira, abril 19, 2006

Defensor dos frascos e comprimidos


A política do jabá, tão suja e corrupta quanto o Congresso Nacional, privilegia a força da grana (que ergue e destrói coisas belas) em detrimento da qualidade musical. Torna ilustres desconhecidos os artistas que, de outra forma, teriam toda possibilidade de cair na boca do povo. E não falo do rock progressivo, de estrutura complexa, ainda que lindo; até mesmo, e principalmente, no meio pop se vêem tais disparates.

Por que outra razão Damien Rice é um nome que passa despercebido, enquanto "É isso aí", versão de Ana Carolina para "The blower's daughter", é cantada a todo pulmão em gritos histéricos da platéia? Por que, se a música original de Rice é tão melhor? Ou ainda, por que "Então me diz", versão da Zélia Duncan cantada pela Simone, tocou meia dúzia de vezes nas rádios e nunca mais, apeasr de toda crítica a essa respeito dizer que a letra da Zélia é melhor?

Outro dia ouvi "The blower's daughter", versão original, na rádio Paradiso FM (95,7 MHz). De vez em quando eles tocam uma música que fez parte de trilha sonora de cinema; e esse clássico nato abre "Closer", de Mike Nichols, na talvez melhor cena do filme. A combinação da ação com o sentimento que a música passa é simplesmente perfeita. E toda vez que, hoje, eu ouço essa canção, logo me vem à mente o homem andando na rua, entrando ônibus, encontrando-se com a mulher, que só mais tarde o espectador vai saber quem são.

Nada que Ana Carolina ou Seu Jorge possam transmitir na versão.

Nunca mais fui a Pasárgada


Nesse 19 de abril, enche o peito o poeta e sopra de uma vez as cento e vinte velas com os pulmões que nunca teve. Manuel Bandeira, tísico antes da penicilina, isolou-se para morrer e viveu mais que muito contemporâneo seu. E não viveu por viver: descobriu, coisa que alquimistas há mil anos atrás já procuravam, o toque de Midas. As palavras em que tocava se transformavam em ouro.

A revista Blocos online programou para hoje uma homenagem ao poeta de Passárgada. E, procurando bem, encontrarão uma poesia minha.

Foi o mínimo que eu pude fazer pela sua memória. Aproveitem (e não se esqueçam dos outros poetas e prosistas).

quinta-feira, abril 13, 2006

Esqueceram de mim


Ou: De como o quixotesco cavaleiro andante Phlavyus de la Tijuca foi tomado, pelos soldados que o deveriam proteger, por um reles invasor, perturbador de donzelas inocentes

Nem a lua, nova por aqueles dias, foi testemunha do ocorrido com o ateu errante àquela hora em que as estrelas já pensavam em ceder o céu para Apolo e sua carruagem solar. Phlavyus saíra de casa às 3 horas da tarde e fora ao Rock in Rio 3 - ou para um campo de batalha contra moinhos e gigantes, que é com o que aquilo mais se parecia - e só então chegava de volta, sem Rocinante, Sancho Pança, ou quem quer deles fizesse o papel, solitário na noite escura.

Depois de um Surto no começo da tarde, precisou de todo o Capital Inicial para acompanhar o Silverchair e os ardidos Red Hot Chili Peppers. O exército, contra o que Phlavyus lutava para tentar enxergar o palco, chegava a 500 mil pessoas, todos com igual objetivo. O milhão de pés levantava tanta poeira que logo, em reagir com o suor, se fazia lama.

Ao fim, pois, não havia estábulo que dispusesse de tantas cavalariças para tal tropel. O rocim já se havia ido, indiferente ao pobre espetáculo apresentado, e solução alguma ao cavaleiro se apresentava senão seguir a pé, pois os pés, ainda que cansados e bolhosos, à extremidade das pernas ainda se encontravam.

- Afastemo-nos um pouco da confusão, e adiante conseguiremos condução. Num lombo de burro, que seja, ou numa nobre carruagem. Disso me asseguro, ou não me chamo Jordy, o Mouro.

Onde Phlavyus perdera a cabeça não se sabe, porquanto confiara no mouro e seguia com esperança de pouco andar e logo achar quem lhe desse carona. Mas se onze quilômetros o separava de casa, por onze quilômetros gastou de seu calçado, dos quais nove, a partir da estalagem de Jordy, inteiramente sozinho. As estrelas que antes vira no horizonte já chegavam ao zênite quando pôde vislumbrar o fim de sua caminhada.

Surgiu um coche, e dele desceu uma jovem donzela. Por que tão longe de seu destino, perguntou-se o solitário errante, o cocheiro, será, cobra tão mais caro para deixá-la em casa? Ela desceu, enfim, olhou para trás e viu Phlavyus. Sentiu-se talvez ameaçada de ver aquela figura maltrapilha e suja se aproximando; tanto foi que se pôs a correr, tomando-o por perturbador de donzelas indefesas. Ainda que não fosse Phlavyus, pelo contrário, protetor de tais frágeis criaturas, aquela em específico não lhe parecera sequer fazer sombra a sua doce Dulcinéia. E não afetou o ritmo de seu andar.

Divisou à frente um soldado, com quem a senhorita se punha a falar.

- O que deseja? - perguntou o soldado a Phlavyus.
- Eu moro aqui.
- Tem certeza?
- Há dezessete anos. Por acaso quereis acordar minha mãe, para que possa vossas perguntas lhas responder?
- Por que, então, estivestes a perseguir aquela frágil donzela?
- Assustou-se ela com meus trajes, enlameados porque estive em batalha contra gigantes, e de lá vim a pé nas últimas três horas. Julgou-me malfeitor, mas não passo, em realidade, de seu vizinho.

E assim se conta a história de Phlavyus, cavaleiro sem cavalo, andante com bolhas nos pés, liberado, pelo soldado que o deveria proteger, para voltar à sua própria casa.

***

Uma hora depois, de banho tomado, vestido de branco, saí para a faculdade. Uma pena que o turno da guarita já tinha mudado. Queria tanto que o segurança me visse arrumado... Eu só ri, mas minha mãe ficou brava e foi falar na administração do condomínio. Nunca mais eu vi o cara por ali.

quarta-feira, abril 12, 2006

Mea culpa


Dessa vez a frase do dia pertence a mim, somente a mim e a mais ninguém. É meu, eu disse primeiro e ninguém tasca. Mas foi sem querer, muito embora aqueles a quem eu conte achem que foi de propósito.

Meu carro já estava havia nove dias na oficina para um reparo. Coisa de nada, só a lateral dianteira esquerda que amassou quando o veículo 1 (eu) abalroou o veículo 2 (dois no boletim de ocorrência, terceiro para a seguradora; eles não chegam a um consenso) tentando sair de uma pista engarrafada em Vila Izabel.

Telefonei para a oficina:

- Oficina (...) - não ganhei nada para fazer propaganda - pois não!

- Bom dia, a senhora poderia me dar uma informação: eu deixei o meu carro internado aí, e gostaria de saber qual a previsão de alta.

De médico e louco todo mundo tem um pouco. Àquela hora ela deve ter me achado um tanto dos dois. Carro internado? previsão de alta? Eu penso com meus botões (só penso, porque no dia que eu conversar com eles vocês podem me vestir a camisa de força): ato falho? e por quê?

Condutor: F.M.S., 27 anos, médico, natural do Rio de Janeiro.
Queixa principal: batida de carro
Anamnese: Há 5 dias, dirigindo na rua..., fui olhar o espelho retrovisor para mudar de faixa. Quando voltei os olhos para a frente, o carro tinha freado bruscamente e não deu tempo de eu parar ou virar o volante. Minha lateral dianteira bateu na traseira do outro veículo.
História patológica pregressa: Nada digno de nota (que eu tivesse culpa).

E faz exame físico, diagnóstico, traça conduta terapêutica e fecha o orçamento. Melhor que muito médico por aí.

Mas o seguro de automóvel está um nível mais avançado que o plano de saúde. Pelo menos no que diz respeito a tirar dinheiro do cliente. Neste, paga-se mensalmente o valor da mensalidade, e, quando se precisa usar, o serviço sai por conta do convênio; naquele, por outro lado, paga-se a anuidade, dividida em algumas vezes, é verdade, mas na hora de usufruir do seguro ainda é preciso pagar a franquia, que é quase a metade do valor já pago.

sábado, abril 08, 2006

To everything there is a season


Tudo ocupado

No closet não tinha mais espaço, no armário da cozinha também não, e tampouco no quarto de empregada. Olhou o baú com as roupas dos meninos: cheio. Sob a pia do banheiro não cabia um só suspiro. O sótão, o porão, tão repletos quanto o estômago depois da feijoada. Lembrou-se do cofre, resgatou a senha dos abismos da memória, e o descobriu igualmente ocupado.

As crianças se multiplicavam atrás de cada porta. Sem ter onde enfiar o corpo do marido, Joana deu o último tiro em sua própria cabeça.

Agora nem no meio da sala tem espaço.

***

Por falta de atenção

Mamãe não me escuta. Ela fala, eu ouço, “meu filho, não faça isso”, “não chegue tarde”, “não fume em casa”. Papai não liga, eu poderia dormir fora e ele não repararia. Do pirralho, nem tomo conhecimento, ele fica no seu canto e não dá o menor trabalho.

Mas mamãe... ah, que saco! O que você quer agora? Ainda que esteja na escola, eu escuto ela falar. Posso ir ao cinema e ela não pára de me importunar.

E não é por falta de atenção. Todo dia eu chego em casa, dou boa noite aos três, fecho o armário e vou dormir. E perdôo mamãe: ela demorou mais para morrer.

***

Quem é você

Mamãe, sou eu, sua filha! Não se lembra de mim, Maria Inês? Mamãe, onde você encontrou essa arma?, abaixa isso, que alguém pode se machucar! Solta, mamãe, que alguém pode pensar que a senhora está ficando maluca de apontar um revólver para sua filha. Não, eu não estou invadindo seu quarto, não quero roubar suas jóias, muito menos o marido. Eu vou contar até três...

As mãos trêmulas baixaram a arma. Mas Dona Beatriz tornou a levantá-la, apontou para sua própria cabeça e não hesitou. Maria Inês tentou evitar, mas o movimento foi muito rápido.

Bam.

O esquecimento se tornara um poço desesperado.

Frases do dia


A primeira frase não é do dia de hoje, mas passou batida pelo blog há umas duas semanas até que eu lembrei de colocar aqui. Foi mais um diálogo que uma frase. Vejam só a bronca que eu levei:

"- De vez em quando eu tenho uns taquicardíacos; uma amiga me disse que isso é muito grave."

- São duas coisas diferentes: taquicardia é a palpitação, quando o coração acelera; e ataque cardíaco é o enfarte, quando falta sangue no músculo do coração. - eu tentei explicar à jovem.

"- Ahn? Você me corrigiu? - ela respondeu, com cara de quem não gostou - Sabe que é muito feio corrigir os outros?"

Ok, eu pensei, então continua falando errado. Da próxima vez que tiver uma palpitação, vai parar em alguma Emergência Cardíaca e não vai sair antes de colher curva de enzimas, fazer eletrocardiograma... Ainda bem - para ela - que é jovem, não vai chegar a fazer cateterismo.

***

"- Eu tive seis infecções de garganta no primeiro semestre, a última foi em março."

Vai ver ele é judeu e o ano começou em setembro... Não, acho que eu saberia pelo sobrenome.

terça-feira, abril 04, 2006

Descobrindo-se louco


Hoje eu não acordei
Havia em meu leito uma pedra
Rígida, fria, definitiva
Aquilo não era eu
Definitivamente

Olhei para dentro de mim
Havia ali deitado um corpo
Imóvel, impávido, absoluto
Aquilo não era meu
Absolutamente

Será não sou eu
Quem eu penso que sou?
Próprio, único, inquestionável
Senhor do que aconteceu
Inquestionavelmente?

Será que tudo que eu sei
Somente eu acho que sei?
Será que eu não sou rei?
Será que tudo que eu vejo
Somente eu acho que vejo?
Será de mim esse gracejo?

Se escuto meu cérebro em prantos,
Se vejo meus internos cantos,
Se escondo os terríveis encantos...
Será que somente eu acho que sei?

Hoje eu não acordei
Atado que estava da cabeça aos pés
Teso, inerte, inviolável
Não sei o que me prendeu
Inviolavelmente

Fantasmas no escuro
Vejo-os, ouço-os ao meu redor
Plácido, tranqüilo, atento
Escuto as vozes no breu
Atentamente

Fantasmas do futuro
Meu destino já sabem de cor
Íntimo, secreto, pessoal
Destino que não é meu
Pessoalmente

Imagem: O Grito, Edvard Munch