domingo, agosto 27, 2006

Medicina e Literatura

A quantidade de livros lidos é diretamente proporcional à qualidade da escrita, quanto a todos os aspectos de um bom texto. Não apenas do ponto de vista literário; qualquer texto, de um artigo científico a uma carta de amor. Vocabulário, gramática, formação de frases, estilo, tudo melhora significativamente com a leitura. A sociedade lê pouco, e isso não é um fenômeno atual ou tampouco brasileiro; a classe médica, portanto, como qualquer segmento da sociedade, é de pouca leitura, quanto tanto restringindo-se à literatura científica.

Chama-se epônimo uma doença, sinal ou sintoma, ou qualquer fenômeno clínico, que receba o nome do seu decobridor. Alguns médicos do passado têm seus nomes imortalizados em íncontáveis epônimos, como é o caso de Fuller Albright, endocrinologista americano da primeira metade do século XX, eminente etudioso do metabolismo ósseo. A ele é atribuído o descobrimento da osteodistrofia de Albright, da síndrome de McCune Albright, entre outros.

Em alguns casos, pelo menos três, que eu me lembre agora, o descobridor da doença preferiu prestar homenagem, não a si próprio, mas a personagens da literatura e obras clássicas que trataram do assunto antes que se tornasse um problema médico. É o caso da Síndrome de Pickwick, descrita inicialmente por Charles Dickens no romance "As Aventuras do Sr. Pickwick". A síndrome se caracteriza por obesidade e redução da ventilação pulmonar, provocando sonolência; exatamente como a brilhante descrição do assistente Sam Weller. Curioso que a doença ganha o nome do protagonista, enquanto o doente da história é na verdade seu empregado.

O Barão de Munchausen é outro personagem que, de tão literariamente complexo, não podia ficar restrito às prateleiras de livro. O Barão é, inclusive, mais famoso que seu autor, o alemão Gottfried August Bürger. O nobre contador de mentiras entrou para a Medicina sob a forma da síndrome de Munchausen, ou, traduzindo para o bom português, a criação de sinais e sintomas em pessoas normais a fim de enganar o médico. Esquentar o termômetro no fogo para fingir que tem febre, para dar um exemplo bem simples. Alguns pacientes podem ser submetidos a dezenas de cirurgias antes de diagosticar o problema.

O terceiro não faz referência a um personagem, mas ao título do livro. "CATCH 22" é uma sátira à Segunda Guerra Mundial escrita pelo norte-americano Joseph Heller nos hippies anos 60, denunciando a estupidez institucional das Forças Armadas. A expressão-título, que em português é traduzida como "Ardil 22", ganhou vida própria, passando a significar algo como "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come", uma sinuca de bico sem saída. No livro, John Yossariam, capitão da Aeronáutica de uma base na Itália, tenta desesperadamente voltar para casa. Mas é decretado o Ardil 22, lei de guerra que diz que só pode pedir baixa quem for louco; mas pedir baixa alegando insanidade é sinal de lucidez. O raciocínio entra num ciclo vicioso que impede qualquer tentativa de retorno. Pois na Medicina, CATCH 22 é um mnemônico da Síndrome de Di George, doença genética caracterizada por: Defeito Cardíaco; Anormalidades faciais; Hipoplasia de Timo, fenda palatina (Cleft palate); Hipocalcemia; e mutação no cromossomo 22.

Não é obrigação nenhuma saber quem foi Charles Dickens, Gottfried Bürger ou Joseph Heller; mas ajuda ma hora de não falar besteira, como quem tenta explicar quem foi Samuel Pickwick e nunca leu o livro, ou ouviu falar uma vez e repete para o resto da vida. Dos três, nunca li "As aventuras do Barão de Munchausen"; mas para quem tem preguiça de sentar uma, duas horas para ler, todos os três foram adaptados para o cinema. A obra de Dickens foi adaptada em 1952, e de todos é o mais difícil de encontrar. O alemão mentiroso já foi às telas cinco vezes, sendo a última pelo ex-Monty Python Terry Gillian, com elenco de estrelas incluindo Eric Idle, Uma Thurman, Ray Cooper, Robin Williams, entre outros. "Ardil 22" tornou-se clássico nos anos 70, trazendo também uma constelação, com Alan Arkin, Orson Wells, Art Garfunkel, Jon Voigt, Martin Sheen, e o diretor Mike Nichols em uma de suas primeiras obras.

segunda-feira, agosto 14, 2006

O poder da marca

Não sou publicitário, nunca tive vocação para o negócio. Mas na qualidade de público-alvo das propagandas, acho que minha opinião vale de alguma coisa. Afinal, é pensando em mim e em cada um de nós que as marcas são criadas e divulgadas.

O programa Marketeria passa às segundas-feiras na Rádio Paradiso FM. Uma vez, curioso, eu fiquei ouvindo. Geralmente mudo de estação quando passa alguma coisa que não música, mas dessa vez eu não mudei. E não me arrependi. Acho que cada um de nós, consumidores, deveríamos ter uma noção maior do processo que transforma produtos em marcas. Por que Omo e não Brilhante? Por que Bombril e não Assolan? O nosso carrinho de supermercado pode ser assunto de psicanálise, tanto quanto os sonhos. A resposta é: porque a Gessy Lever e a Bombril conseguiram associar a marca a uma sensação no consumidor, que vê o M amarelo do McDonald's e começa a salivar; que vê amortecedor de carro a cada Schnauser, e molho de tomate a cada elefante.

Você compra determinada marca porque: 1) funciona; 2) é o primeiro nome que vem a sua cabeça qando se fala em determinado produto. Não necessariamente nessa ordem.

E por que, então, você vota em determinado candidato? Você tem a ingênua ilusão de que a resposta não é exatamente a mesma? Política e marketing andam juntas desde o início dos tempos; a quantidade de votos é diretamente proporcional à qualidade da campanha, à capacidade de transmitir um nome ao eleitorado e associá-lo a uma gama de sensações, sobretudo esperança de um mundo melhor.

Todo veículo, parado ou andante, que carregue em si uma marca é, ali naquele momento, a imagem que um consumidor em potencial tem daquela marca. Por exemplo: um outdoor da Coca-Cola pichado com palavrões não está sujando apenas aquele espaço físico, o papel do cartaz, mas também a imagem da marca Coca-Cola. Agora, se o caminhão da Coca-Cola está na sua frente numa estrada de uma pista, e o motorista, andando devagar, abre espaço para você passar, foi uma atitude generosa do motorista, mas também um ponto a favor da marca Coca-Cola.

Pois, um exemplo de verdade, foi exatamente o que aconteceu comigo na volta de Teresópolis, ontem, dia dos Pais. O Fiat de campanha do candidato a deputado estadual Bernardo Rossi, do PMDB, com seu nome ocupando a totalidade de cada uma das janelas - imagino que o espelho retrovisor interno fosse objeto de decoração -, passou a muitos quilômetros por hora além do permitido, e quando chegou a um ponto mais congestionado, saiu cortando e costurando de uma faixa para outra, fechando os carros que vinham diminuindo a velocidade.

A marca Bernardo Rossi, por mais que eu já não fosse votar nele - e isso não interessa, porque outros ali bem podiam estar cogitando a possibilidade -, saiu bastante arranhada do incidente, por culpa de um motorista irresponsável que não desconhece a importância da sua função. O caro ficou inteiro.

domingo, agosto 13, 2006

Falta "cultura musical" à juventude?

Esse texto foi escrito em resposta a uma discussão na lista ProgBrasil, em que se discute rock progressivo e, de vez em quando, sob olhares estranhos dos mais sectários, outros assuntos de música em geral.

Resumindo a questão, argumentavam que aos jovens de hoje em dia faltava uma certa "cultura musical". Afinal, "eles nem sabem o que é Pink Floyd". O meu ponto foi analisar que a tal "cultura musical" não pode ser entendida como um valor absoluto, já que pessoas diferentes têm áreas de interesse diferentes. Bom, minha argumentação foi como se vê adiante.

E caso interesse, um outro ponto de vista, não tão diferente do meu, mas também não exatamente igual, pode ser lido no blog do colega Alex Saba.

***


Estou na dúvida quanto a quem disse isso, se Jorge Luis Borges ou José Saramago, mas uma vez um deles falou que "não adianta tentar popularizar a literatura; arte sempre foi para poucos".

É mentira?

Quantos espanhóis liam Cervantes no século XVI? E, cumulativamente, qual o percentual de pessoas que passaram pela Terra desde então que leram esse clássico mais-que-perfeito?

Vamos por parte: não leram por quê?
Várias respostas: porque não tiveram acesso, falta de instrução ou indisponibilidade, pela distância geográfica, ou simplesmente porque aquilo não tem a menor importância para algumas (muitas) pessoas.

Ler é importante? Sim, muito. O estudo insere o indivíduo na sociedade, com melhores perspectivas salariais e de status em seu meio. Por isso toda e qualquer tentativa de aumentar a instrução do povo é válida. Mas toda e qualquer tentativa deve como base a real situação de que algumas (muitas) pessoas simplesmente dispensam essa possibilidade.

Se você tem uma grande biblioteca, por que seu filho não lê?

Estou falando de literatura, mas os exatos mesmos argumentos podem ser trasferidos para a música. Mozart é belíssimo, Bach e Stravinsky também, apsar das nítidas diferenças de estilo. Pink Floyd foi tão importante para a história do rock quanto Monarco para o samba. Um cara do meio do samba que não conhece Roger Waters e companhia é tão "ignorante" (na acepção original do termo, que ignora) quanto se eu cruzar uma loja das Casas Bahia e não reconhecer o DVD da Velha Guarda da Portela.

Melhor mesmo é reconhecer e respeitar as diferenças.
Se alguém não liga para música, ou se gosta de um tipo diferente de você, é só isso, alguém diferente, e não necessariamente alguém inferior, ridicularizado, ridicularizável.

Se os jovens de hoje em dia não têm cultura musical, por que isso é necessariamente um problema? Aliás, isso é um problema para quem?
Para eles mesmos, por quê, se eles vivem normalmente sem uma cultura musical?
Para mim, que "tenho" cultura musical (depende de com quem eu estou falando, se com um sambista, um forrozeiro ou um roqueiro), por que devo me importar tanto se os outros conhecem a mesma coisa que eu?
Ou para a indústria, que deixa de vender discos quando ele poderia estar comprando?

A "cultura musical" de massa está mudando, queiramos ou não, a indústria musical (e os músicos) queira ou não.
Com a nova "cultura comercial", as indústrias, que antes faziam 100 para um público de 100 (unidade arbitrária), agora tem capacidade de produzir 10.000, mas para "apenas" 1000 compradores. Nota o excedente de produção, para onde ele vai? Para a publicidade, é claro, para tentar convencer outros 9000 que antes não comprariam.

terça-feira, agosto 08, 2006

Quadrinhos também são literatura



Maus, Art Spiegelman, Ed. Brasiliense, 1994/95

Art Spiegelman é um típico judeu nova-iorquino, como outros tantos, natural da cidade mais hebraica fora de Israel. Ele faz parte da primeira geração de judeus americanos após o holocausto da Segunda Guerra Mundial. Filho de Anja e Vladek Spiegelman, sobreviventes de Auschwitz, perdeu o irmão Richieu e grande parte de sua família nos porões nazistas.

Art cresceu e se transformou em um dos expoentes do cartoon, mídia inicialmente maldita, e mais bem aceita a partir dos anos 70. Ele participou ativamente, como desenhista da New Yorker, do processo de acreditação desse novo formato de arte.

De cartunista a autor de histórias em quadrinho foi um passo. Se os livros HQ geralmente têm um roteirista e um ilustrador, Art Spiegelman, pelo contrário, faz as vezes dos dois papéis, escrevendo as próprias histórias que desenha.

Maus conta o drama de sua família na Czestochowa, Polônia, das décadas de 30 e 40, frente ao crescimento do nazismo e a subseqüente invasão alemã. A história geral da Segunda Guerra é bem conhecida do grande público, principalmente devido à enorme freqüência do tema no cinema. "O resgate do soldado Ryan", "A lista de Schindler", "A vida é bela", para ficar entre os recentes. Um acontecimento desse porte é palco para muitos personagens intensos com suas histórias únicas de sobrevivência e morte. Não é diferente no caso dos Spiegelmans.

Se o assunto é já é um velho conhecido, o mesmo não se pode dizer da forma utilizada. Não apenas pelo fato de se tratar de uma HQ. Art Spiegelman cria uma fábula, transformando as várias nacionalidades em espécies diferentes de animais, que simbolizam a situação em que aquelas pessoas se encontram. Os judeus, por exemplo, subjugados pelo poderio bélico nazista, são os ratos do título ("maus", em alemão, quer dizer rato); os aliados de Hitler são gatos, inimigos mortais dos ratos; e os norte-americanos são cachorros; os poloneses não-judeus são porcos, por terem compactuado silenciosamente com a eliminação dos judeus; e daí por diante. Mais ou menos como se vê (escrito, e não desenhado) em "A revolução dos bichos", de George Orwell, analogia rural da Revolução Russa de 1917.

Outro aspecto que mostra a criatividade da obra é a forma metalingüística com que Art aborda a história. O livro começa no tempo presente (1973), quando ele conta como nasceu a idéia de biografar sua família em HQ, como surgiram as espécies animais em representação dos personagens, como se passaram as entrevistas com seu pai... No início do livro II, Art e sua namorada Françoise discutem qual bicho ela vai ser, uma francesa convertida ao Judaísmo. Ele aproveita o trocadilho e sugere uma sapa, já que os americanos, por influência da implicância britânica, chamam os franceses de "froggies". Todo o tempo ele alterna a história propriamente dita, de seus pais na guerra, e o contar a história, inventando metáforas e entrevistando Vladek.

Em 1998 Art Spiegelman veio ao Rio de Janeiro para uma conferência no Centro Cltural Banco do Brasil. E lá estava eu, os dois volumes de Maus em mãos, ao lado do Ed Motta, escutando o homem falar do seu livro. Saí com um autógrafo em cada um, e um desenho especial, feito à mão, na folha de cada livro. Além de um ótimo autor, é uma figura muito simpática, inseparável do cigarro e de seu filho Dashiel (que hoje deve ter uns 15 anos).