sexta-feira, março 31, 2006

Achei

Quando minha bisavó Etienne morreu, em janeiro, escrevi que fiz uma vez uma carta para meu bisavô Antônio numa aula de Redação. Era dia do aniversário dele, 12 de fevereiro de 1993, e eu estava no 1º ano do 2º grau. Ele era poeta, mas nunca publicou nem nada, mas eu tinha um caderno com as suas poesias datilografadas. Ganhei da minha bisavó, achando que estaria melhor comigo. Enganou-se. Não faço a menor idéia de onde esteja o livro desde que nos mudamos há 2 anos e meio. Mas encontrei a carta e uma de suas poesias em um post do meu antigo blog, em comemoração ao décimo ano daquela distante aula de Redação e aos seus 96 anos de nascimento.

Eis, então, o que eu consegui garimpar:

Ser Feliz

É feliz, quem tem um peito amigo,
Onde brote um amor doce e perene,
E que traga uma imagem só consigo
Como eu trago a imagem de Etienne!...

É feliz, quem na hora da partida
Num adeus, tem um lenço que lhe acene
Com amor, em suave despedida,
Como eu tenho o lencinho de Etienne!...

Quem tem, pois, esse gozo assaz superno,
Esse amor inifinito todo eterno,
E esse lencinho que saudoso acene,

Terá vida sublime, calma, pura,
Pois não pode deixar de, com ternura,
Ser feliz, como eu sou com Etienne!...

Gostou, meu amorzinho?
Do teu para sempre
Antoninho

Antonio Moura de Lima, 05 de Janeiro de 1926

***

Querido Antônio,

fiquei muito feliz ao acordar hoje de manhã e me lembrar que hoje é um dia muito especial na sua vida, o seu aniversário. Gostaria de lhe enviar um presente, mas não posso devido à grande distância que nos separa. Você, aí, do outro lado; e eu, aqui, onde você também deveria estar. Vai demorar muito, mas quando eu for para aí, eu lhe entrego esse presente.

Muitas felicidades,
Flavio

quinta-feira, março 30, 2006

Karma Police


Da série "Crônicas inesquecíveis já quase esquecidas", resgato o texto que escrevi quando fui ao templo hare krsna da Barra, ocasião que eu cito na crônica anterior. Editado, porque tem coisas ali que eu não gostaria de repetir, mas nada que estrague o bom andamento do texto.

Sabe aquela história de "mares nunca dantes navegados"? Pois é, hoje eu naveguei um desses mares. Não só eu nunca tinha navegado como nunca tinha imaginado que um dia navegaria... ainda mais sozinho e por conta própria.

Bom, indo direto ao assunto: hoje fui conhecer um templo Hare Krsna. E descobri que se escreve exatamente assim, sem o "i" nem o "h". "Como eu fui encontrar esse templo?", alguém perguntaria. Andando pela Estrada do Açude, no Alto da Boa Vista, encostei o carro no lugar onde duas mulheres vendiam um adesivo de paz. Olhei aquilo por tanto tempo que fiquei sem graça de negar alguns centavos. Perguntei qual era a causa, e uma delas me explicou que estavam amgariando fundos para a missão Hare Krsna. E assim descobri que o tal templo fica a poucos quilômetros da minha casa.

Saí de casa sem dizer onde iria. Para a minha mãe, eu fui dar uma caminhada. E não é mentira... dá no mínimo uns 2 quilômetros. Sabia mais ou menos onde era, mas não o local exato. Andei procurando, olhando para os dois lados da rua, mas só o que eu encontrei foi um sujeito careca, com um rabinho atrás da cabeça e trajando um vestido laranja. Supus que ele saberia... Perguntei-lhe e ele tinha acabado de sair do templo. Voltamos um pouco, eu já tinha passado pela porta sem notar. Mas como notar se é uma casa normal, igual às outras?

O tal rapaz se apresentou como bakhta André. Isso quer dizer que ele é devoto a Krsna. Acompanhou-me até o templo e me mostrou o altar e suas divindades. Contou um pouco da filosofia e disse que dali a pouco estaria acontecendo uma cerimônia com música e dança, comidas vegetarianas e tudo o mais. Se já estava lá, por que perder? Nesse tempo, descobri que o motivo inicial da minha peregrinação tinha sido em vão: a moça tinha dito que haveria cursos de yoga... só que eu queria o hatha-yoga, aquele das posturas e técnicas respiratórias; e lá eles só praticam o bakhti-yoga, o da devoção.

Fiquei mais pelo que o André disse do que pela filosofia em si. Ele me emprestou um livro e eu o li enquanto não começava. Acabei achando bastante interessante, totalmente diferente do que el acreditava. O único problema para mim é que para seguir a doutrina tem que acreditar em Deus, e eu já sou reprovado nesse primeiro quesito. Mas um argumento para a existência de Deus me pareceu bastante convincente: segundo o livro, para toda ação existe um componente físico e um psicológico. Assim, para alguém pintar um quadro, a ação física é movimentar os músculos a fim de manusear o pincel; enquanto a ação psicológica é a vontade de pintar. No início de tudo, a ação física foi o Big Bang. Mas qual foi a ação psicológica? Isso serviria para qualquer fenômeno da natureza: qual a vontade por trás de tudo?

Enfim, para mim não tem vontade nenhuma e pronto. Mas ainda assim eu vou ter que justificar a minha resposta a partir dessa pergunta. E ainda não consegui... Talvez a premissa esteja errada, querer comparar uma ação humana com um fenômeno da natureza. Mas por que não? É, isso embolou o meu meio de campo...

As músicas prometidas começaram às exatas 6h da tarde. Não precisei esperar muito, não cheguei muito mais cedo que isso... A base melódica era mantida por um instrumento de teclas com fole, parecido com um acordeão, só que de chão para as pessoas poderem ficar sentadas. Ainda vou querer saber o nome disso... O som é muito bom! A base percussiva tinha pratos e sinos de vários tamanhos, e algo parecido com um atabaque, mas com formato diferente. Eles entoam mantras em vários ritmos possíveis e imaginários, até perto de samba eles chegaram. As letras não têm muito mais que três palavras, mas a variedade de músicas é enorme. Repetem à exaustão:

"Hare Krsna, Hare Krsna
Krsna Krsna, Hare Hare
Hare Rama, Hare Rama
Rama Rama, Hare Hare"


O culto propriamente dito descobri ser uma aula semanal sobre um versículo do livro sagrado Bhagavad-Gita. Cada semana, o mestre lê em sânscrito o versículo escolhido, traduz para o português e discute com a platéia o que aquilo quer dizer e como está inserido no contexto do livro. Eu não esperei até o fim: ele começou a ler, eu não entendi nada, todo mundo repetia, eu saí e fui ler do lado de fora. Mas não conseguia ler: era só um devoto me ver sozinho e sentava do meu lado para falar sobre a filosofia de vida, sobre Krsna, os mantras, os yogas, as divindades e tudo o mais. A moça que me vendeu o adesivo no início da história, pois então, descobri que ela é conhecida por um nome em sânscrito, mas que tem o seu nome normal para as ocasiões normais; mas que o seu filho, que não parava quieto, tem o nome hare krsna na certidão de nascimento.

Depois teve mais música com a abertura do altar. Só que dessa vez, estavam todos de pé, dançando e pulando como se estivessem em um show de rock. Mas no lugar de canções de rock, ouvia-se o mesmo mantra "Hare Krsna" repetido e repetido. De acordo com um outro bakhta, toda a doutrina deles se baseia em estudar a combinação em quatro versos dessas três palavras. E no fim de tudo, o mesmo mantra foi repetido mais uma vez ao ritmo de Parabéns pra Você em homenagem ao lider do templo que aniversariava.

Acho que vou voltar domingo que vem...

Fim da "Crônica inesquecível já quase esquecida".

***

Ian Anderson é um dos poucos flautistas do rock. Fundador do Jethro Tull nos anos 60, ele diz em uma entrevista para o DVD "Noyhing is Easy - Live at the Isle of Wight 1070" que escolheu a flauta depois de tentar a guitarra, pois nunca seria como seus ídolos Jimi Hendrix e Eric Clapton. Não só adotou um instrumento diferente para o blues rock pesado que eles pretendiam adotar (logo substituído pelo rock progressivo) como desenvolveu a técnica bastante sui generis de tocar apoiado numa perna só, com a outra cruzada na frente do joelho.

Sem entender por quê, a comunidade indiana começou a chiar, a boicotar a banda, a quebrar os discos. Ian Anderson não sabia que estava imitando a atitude clássica da divindade vishnu.

Foi um susto. Compreendendo, contudo, a reação hare krsna, Anderson se explicou - não mudou sua forma de tocar, mas se explicou - e todos viveram felizes para sempre. Até que vieram os anos 80 e a maioria das bandas de rock progressivo foram estragadas.

O Jogador de Boliche


No tocante a Deus, todas as posições possíveis são religiões. O ateu mesmo, ou o agnóstico, meu caso, não escapam a essa generalização. Nada permite confirmar ou refutar a noção de uma figura criadora do universo, o Grande Matemático inventor das Leis da Física, o Grande Biólogo fundador do Criacionismo, o Grande Químico responsável pela união dos átomos em moléculas, das moléculas ácidos nucléicos, patenteando, assim, a complexidade. Mas enquanto não puder ser mostrado que existe - e eu não imagino como um dia possa - e essa existência fizer alguma diferença para mim, prefiro ficar, no meu canto, respeitando todos os outros e crendo na aleatoridade dos acontecimentos primevos.

Tenho amigos de quase todas as religiões, católicos, judeus, protestantes - só não conheci um muçulmano até hoje -, e inclusive já fui a (e gostei) um templo hare-krishna. Todos me acharam louco à ocasião. Mas para mim é a mesma coisa que ir a igreja num casamento ou ir a uma igreja batista ver uma amiga cantar no coral (o que também já aconteceu). Convide-me e eu vou - só não tente me converter.

Da mesma forma, certa vez fui visitar minha tia Maria, ou Irmã Sodré, no Cenáculo, em Laranjeiras. Irmã da minha bisavó, sagrou-se freira há mais de 60 anos, morou em vários lugares e se fixou num convento em Belo Horizonte. Apenas recentemente, depois dos 80 anos, deixou de vir para o Rio de Janeiro dirigindo seu próprio carro. Até então ainda pilotava, inclusive, os tratores da obra de reforma do convento. Participante ativa da vida religiosa, parou de dirigir veículos, mas continuou dirigindo os programas de assistência religiosa e social à população vizinha, em cursos de costura e trabalhos manuais.

Segundo Albert Einstein, "Deus não joga dados". Pode ser, mas tudo indica que Ele seja um Grande Jogador de Boliche. Garrafa a garrafa, vai derrubando a Humanidade, substituindo por peças mais novas, recém-nascidas, que, crescendo e envelhecendo, acabarão virando garrafas caídas na canaleta. Uns acham que os mortos vão para o céu, para o inferno, que não saem jamais debaixo da terra, que são recebidos por vinte virgens... Eu, pessoalmente, não acredito em nada disso; mas penso se não acontece com cada um aquilo em que ele acreditava antes em vida.

Depois de uma breve internação, tia Maria, 91 anos, agora está conversando com sua irmã, minha bisavó Etienne, depois de tanto sentir não poder estar aqui quando ela morreu.

sábado, março 25, 2006

Coincidências existem?


Da série "Crônicas inesquecíveis já quase esaquecidas", ressuscito um texto não tão antigo, mas que eu gosto muito por ter misturado um questionamento anterior, com mnha leitura na ocasião e um fato naquele presente.

Coincidência, ou "co-incidência", remete a eventos simultâneos - ou próximos em tempo - de alguma forma correlatos. Correlatos realmente ou apenas uma manifestação do aparelho psíquico tentando chamar nossa atenção?

Venho da leitura recente do livro "Os olhos do Outro", uma análise biográfica e literária de E.T.A. Hoffman pelo psicanalista Oscar Cesarotto. Discute-se a noção da auto-imagem em outro corpo, o eu refletido como na história de Narciso. Sigmund Freud, em "Das unheimliche", nos apresenta a interpretação do conto "Homem de Areia", de Hoffman, como exemplo do seu conceito de "estranho", ou "sinistro, como costuma ser traduzido para o português. O encontro com o Outro é uma freqüente causa de estranhamento, tanto na literatura como na "vida real". Já começa com o espelho, única representação de nós mesmos, que nos mostra uma imagem invertida. A nossa direira é a esquerda "dele". Se somos destros, "ele" é canhoto. Quer coisa mais estranha?

Com todas essas definições tão frescas na cabeça, estava eu hoje no hospital, já tomando o caminho do estacionamento para ir embora, quando me vejo eu próprio logo adiante andando em outro corredor. "Estranho" é o mínimo que Freud poderia ter dito.

Meu tipo físico não é dos mais extravagantes, e várias vezes me surpreendi com alguém parecido comigo. Na faculdade perguntavam se eu era irmão de um tal Haroldo. Quando o conheci, por acaso, soube logo quem era. Já me vi no retrovisor, dirigindo o carro de trás. E até na formação dos Los Hermanos tenho meu Outro, sentado atrás dos teclados. Em algumas fotos da banda, chego a pensar que sou eu ali, não pelo sonho de ser músico, mas pela parecença física.

Por isso eu pergunto: será que dessa vez o encontro chamou minha atenção porque eu acabei de ler o livro? Será eue eu não passo por ele todo dia e só dessa vez eu estranhei?

Ele usava óculos, eu também. Meu topete é repartido à esquerda, o dele à direita, exatamente como eu me vejo no espelho. Ele estava no telefone celular, não sei com quem, e eu tentava falar com uma amiga, residente de Radiologia. Saí um pouco do meu caminho e cheguei mais perto. Achei que ele fosse reparar, tão fixamente eu olhava. Mas deu às costas e eu voltei ao meu caminho até o carro.

Tenho um Peugeot 206 vermelho. Algum espírito de porco me roubou a calota dianteira esquerda. Eu sempre lembro disso quando chego perto do carro, fica bem embaixo da porta do motorista. Esse modelo tem se tornado popular de uns tempos para cá, sobretudo na cor vermelha. Não chega a ser estranho eu encontrar três veículos semelhantes no mesmo bloco do estacionamento. Mas descobrir que o carro imediatamente à minha frente é um gêmeo sem a calota dianteira direita, como um espelho colocado á minha frente, ah, sim, isso é muito sinistro.

Só faltava o meu Outro ser o dono... Mas não, ele já tinha ido embora.

Eu teria reparado tudo isso não fossem minha últimas leituras? Talvez sim, talvez não; quem há de dizer com certeza? Mas certamente esses pensamentos esquisitos não estariam na minha cabeça.

Lobo solitário


Quando chegaste
Qual violento sudoeste
Panejando minha bujarrona em riste
Lembrei-me que foste
De todas, o maior embuste

Agora, lobo solitário,
Pelas cincunstâncias, jamais por opção,
Velejo acompanhado pelo silêncio do mar.

sábado, março 18, 2006

Duas versões


Pesadelo

Dormia à noite, tive um pesadelo:
Num beijo, um corpo adentro se invagina
E presa na garganta a tal toxina
Liberta-se da essência em desmazelo

Disforme, cresce e no útero se instala
Cancro de proporções quase fetais
Logo perde a consciência, perde a fala
Se assume a massa formas infernais

Explode o ventre em forte terremoto
Espirram sangue, vísceras nos cantos
O acaso de sobrevida é remoto

No entanto há sorte e sob os tantos prantos
A vida é protegida do perigo
Mas nasce o monstro - divino castigo

10 de fevereiro de 1999

***

Amor à segunda vista

Um dia juraram amor eterno, mas já fazia tanto tempo que a eternidade talvez tivesse se passado sem que disso eles se dessem conta. No instante em que se reviram, contudo, toda a paixão enterrada na memória aflorou como na primavera. Correram em direção um do outro, abraçaram-se, beijaram-se dez, cem, mil vezes mais intensamente que da primeira vez. Tal a violência do embate de línguas, subitamente ele se reparou perdendo a guerra, invaginado boca adentro. Do corpo inteiro, então, se fez órgão sexual: ele, engolido, envolto em mucosas; ela, acariciada por dentro como jamais imaginara. Desceu, seguindo o caminho da saliva, e procurou onde se instalar. Encontrou o útero.

15 de março de 2006

sexta-feira, março 17, 2006

Clássicos


A Rádio MEC FM ocupa a freqüência 98,9 do dial carioca e é conhecida (menos do que deveria) pela sua programação de música clássica. Desde a extinção da rádio Cidade, a MEC ocupa a posição 3 da memória do rádio do meu carro. Quinta-feira, pois, foi com surpresa que eu sintonizei a emissora e ouvi a guitarra distorcida de Jimi Hendrix. Meu primeiro pensamento foi "nossa, acabou a Cidade mas nasceu uma melhor ainda!". Não, era de fato a velha MEC. Mais estranho foi ouvir o locutor, com seu tom formal, acostumado a anunciar a "Sonata para violino e piano ewm lá maior" de César Franck, nada parecido com os pseudojovens da Cidade, explicar:

- Você acabou de ouvir o clássico "Voodoo Chile", de Jimi Hendrix, parte da trilha de (...)

Não lembro o nome do filme que ele falou. Mas procurando no IMDB, encontrei uma penca de filmes em que essa música aparece, de Quase Famosos a Em Nome do Pai, passando pelas óbvias referências a filmes de festivais, como Monterrey, Woodstock e Ilha de Wight.

Rádio de clássicos tocando Jimi Hendrix?
Faz sentido. É a evolução do mundo; o reconhecimento de um grande artista que revolucionou a guitarra. Mas não é bem por isso: o programa "Música em Cena" só toca canções que participaram de alguma forma de uma trilha sonora.
Mas ainda assim é bom pensar em Jimi Hendrix sendo reconhecido como clássico.

sábado, março 11, 2006

Os bondes do futuro


Da série: Isso é hora de Propaganda Eleitoral?, promovida pelo partido [PV – (PT ∩ PRONA)] ÷ [PSOL –(PSTU U PP)]

Brasileiros e brasileiras,
Droga, "carioca" é comum de dois gêneros, como eu posso fazer um equivalente para o Rio de Janeiro?

Enfim, cariocas, uni-vos ao meu partido na luta por um melhor e mais confortável transporte público. Vossos traseiros pedem assentos de qualidade, nem tão agudos ou circunflexos, e onde podeis encontrar senão nos bondes?

Se eu perguntar para um carioca bem esclarecido qual a maior dificuldade para reativarmos as velhas estações de bonde, sabeis o que me responderá? Talvez fale da dificuldade de se colocar trilhos por toda a cidade, como víamos há 50 anos.

E se eu disser que isso não configura grande problema, se vos explicar minhas razões e as formas de se viabilizar tal projeto, mudareis de opinião? Espero que sim, espero que sim.

De quatro em quatro anos, ou seja, de véspera de eleição em véspera de eleição, o governo municipal promove intensa revitalização das calçadas, fechamento dos buracos. Com material tosco, é verdade, ou com muita má vontade; pois uma vez eleito o novo prefeito (ou o antigo) os buracos ressurgem todos ao mesmo tempo. Nos bairros da Grande Tijuca, por exemplo, Vila Izabel, Grajaú, Andaraí, Maracanã, ali se vêem mais paralelepípedos do subsolo do que asfalto. Não chamaria de buracos; são tão confluentes que o asfalto é que parece estranho, feito quebra-molas no terreno rebaixado. Na Rua Maxwell, os antigos trilhos estão aparentes; também na Barão de Mesquita e na Marechal Jofre o passado já emergiu.

Ora, não vos parece óbvio? Desistamos do recapeamento, aceitemos os paralelepípedos e os trilhos, ressuscitemos os bondes. Custa menos tirar tudo de uma vez do que refazer tantas vezes com material de terceira; é mais seguro andar sobre o calçamento de pedras do que sobre um híbrido de afalto quebrado e paralelepípedos.

Eleitores e eleitoras (achei uma boa forma!), abri vossos corações para o futuro, porque ele vem de trás, vem bem de trás, e está prester a vos atropelar se não prestardes atenção.

Obrigado.

O Haiti não é aqui; Medellin é aqui


Sarajevo, 1914. O assassinato do arquiduque austro-húngaro Franz Ferdinand é historicamente considerado o estopim da Segunda Guerra Mudial, o evento que engatilhou todos os acontecimentos que havia muito estavam engasgados, qual espinha de peixe armamentista, no pescoço* de toda a Europa. A política internacional corria à máxima capacidade pulmonar, com tratados, acordos de ajuda militar e não agressão, sobre a lâmina de uma faca de dois gumes. Qualquer escorregão imergiria a Europa numa poça de sangue. E o resto do mundo, por conseqüência. Como de fato aconteceu.

* Esse texto foi escrito diretamente em Português. "Pescoço", aqui, quer dizer pescoço mesmo, guardada a metáfora; não é, portanto, uma tradução mal feita do francês "cou".

Rio de Janeiro, 2006. Há pelo menos três décadas os cariocas vivem uma guerra civil não declarada. Como chamar de outra forma a situação em que a Polícia Militar defende a ordem pública empunhando fuzis de alta destruição, contra bandidos armados de granadas e artilharia anti-aérea? Enquanto isso, o cidadão comum, médico doméstica empresário gari economista pedreiro banqueiro bancário, é encontrado por um míssil perdido.

O cúmulo da falta de repeito às instituições se deu com a invasão do quartel de São Cristóvão. O mesmo Exército que nos traz lembranças recentes tão amargas aparece agora como vítima do roubo de dez fuzis e uma pistola. Tão vítima quanto toda a população carioca, que vai ver essas armas usadas contra a sua cabeça.

Se o Exército não se tivesse levantado, seria o fim definitivo do Rio de Janeiro; pois se o povo, representado pelos três níveis de governo, está parado diante dos acontecimentos, resta a quem tem o único poder que o tráfico de drogas respeita: contingente e armamento.

Não defendo a instalação de uma guerra; defendo, sim, o reconhecimento de que a guerra existe, eu queira ou não, o Sr. e a Sra. Garotinho queiram ou não, Sr. Leonel Brizola (esse já não reconhece mais nada), Sr. Luiz Paulo Conde e Sr. César Maia queiram ou não. Porque da negação nasce a inércia.

Aí vem a pergunta: essa guerra precisa necessariamente do Exército?

Os jornais cariocas noticiaram nas últimas semanas que existem milícias mafiosas comandadas por policiais civis e militares que tomaram para si o poder paralelo de algumas favelas, após destituir, prender, matar os traficantes. No lugar deles, agora são os policiais que cobram os impostos informais em troca de proteção (leia-se: em troca de não ter a sua vendinha saqueada, incendiada, possivelmente com você dentro).

Se a inteligência da chamada "banda podre" consegue, por que não a boa polícia? Talvez porque achar a tal boa polícia é como marcar uma molécula de água com hidrogênio radiativo e jogar no oceano. Vai encontrar! Mas será que o Exército também não tem lá a sua "banda podre"? Com certeza: Rubens Paiva, Vladimir Herzog e outros tanto que o digam, de onde estiverem.

O Exército cerca as favelas e fecha as saídas do Rio de Janeiro. Há quem defenda um pente fino nas comunidades, como várias cartas a O Globo desde o início da ação. Há também quem seja contra, claro, uma atitude como essa nunca vai ser unânime. Para mim, se é para revistar todas as casas, interrogar cada morador, procurar por drogas e armas, por que se restringir às favelas? No meu condomínio, classe média-alta carioca, que eu saiba (e eu sou o último a saber, pior que marido traído), pelo menos dois jovens já foram presos por tráfico de drogas.

O tráfico está lá tanto quanto está aqui. É um câncer metastático, que quando se pensa extirpado até a última ponta, tempos depois reaparece onde menos se esperava. Está nos artistas cheiradores de cocaína, nos adolescentes fumadores de maconha, no ácido das raves, na cola das ruas. Mas estes são apenas clichês: a droga pode estar em qualquer lugar a qualquer hora.

O tráfico, por ser fora da lei, é onde vigora o capitalismo mais selvagem, a lei da oferta e procura em sua essência. E dá mais dinheiro, a quem se disponha a pagar o preço de morrer jovem, do que qualquer outra opção de vida. É lucrativo porque tem quem queira; e tem quem queira porque a sociedade é permissiva. Dizer não a um cigarro de maconha é pagar mico, é careta, quando o errado é na verdade quem oferece.

Eu mesmo me acho estranho escrevendo isso, tão conservador e tão realista.

sexta-feira, março 10, 2006

Órfãos do rock

Tudo sempre acaba bem; e se não está bem, ainda não acabou. Será? Pois se a máxima é verdade, a rádio Cidade está para dar a volta por cima e reconquistar a freqüência de 102,9 MHz FM do dial carioca. Uma da poucas sombras refrescantes no deserto musical que se instalou, a estação, na virada do mês de fevereiro para março, foi substituída por uma tal Oi FM.

A memória número 1 do seletor do meu carro já foi devidamente trocada. Não tem apreciador de boa música que agüente as baboseiras que tocam dia e noite na tal Oi. Que Oi que nada; antes fosse Tchau!

De tempos para cá as emissoras de rádio vêm sendo seladas, rotuladas, etiquetadas, pelo tipo de som que tocam e pelo público-alvo que desejam atingir. A Cidade era a Rádio Rock, slogan da 89 FM de São Paulo, responsável pela programação; as outras que prestam agora se contam nos dedos de uma mão, a direita do Lula: na ordem atual do meu seletor, temos a 95,7 Paradiso FM, com um pouco de tudo; a 90,3 MPB FM, de música brasileira de todo tipo; a 98,9 Rádio MEC, de música clássica, nova memória desde o infortúnio; a 101,3 Transamérica, na qual é difícil achar o que preste, mas muito de vez em quando eles se superam; e a 103,7 Antena 1 Light FM, em que só toca música do tempo dos meus avós (o que não é necessariemente ruim).

A Rádio Cidade surgiu em 1977, um ano mais velha que eu. Foi, nos anos 80, junto com a 94,9 Rádio Fluminense, uma das divulgadoras do incipiente rock nacional. De lá para cá mudou de cara várias vezes, ao sabor do gosto musical imposto aos adolescentes, o rock que virou dance que virou eletrônico que voltou a ser rock. A última mudança, há dois anos, foi tão radical, quea rádio, por causa da filiação com a 89 FM paulista, passou a adotar nova certidão de nascimento. Apesar de em todo esse tempo não ter mudado de nome.

E agora me vem a tal Oi FM. Maldição!

A Fluminense voltou e já foi embora, dando lugar para a BandNews. A Globo FM também saiu do dial em troca por uma estação de notícias, a CBN FM. As rádios boas desaparecem, espectro se enche de jornais e evangélicos. O blablablá adolescente ainda pode ser ouvido na Transamérica, Jovem Pan, e agora na nova Oi.

No site da rádio, a notícia é assinada por Marcio Morais, gerente de internet. Em seu texto, Marcio parece ter-se inspirado na carta-testamento de Getúlio Vargas para dizer que a rádio não morreu, que continua a trasmitir pela internet: "a melhor rádio do Rio deixa de ser apenas local e passa a ser mundial", uma auto-estima análoga ao deixar a vida para entrar para a História.

Que pena, eu não tenho computador no eu carro!

segunda-feira, março 06, 2006

Onde esperar o inesperado


Nos confins mais distantes de "Até Quando?", certa vez escrevi uma lista dos artistas mais injustiçados. A cultura pop (discutível até que ponto se pode chamar de cultura, mas tudo bem) não poupa ninguém, já dizia uma canção dos Engenheiros do Hawaii; muito menos aqueles que não vendem suas obras para os programas popularescos de televisão, que não fazem um jabá com as rádios. O maior definidor de qualidade hoje em dia é a capacidade de fazer sucesso, mas, paradoxalmente, isso não é sinônimo de qualidade. Ou seja: para ser (reconhecido como) bom, precisa vender; mas nem tudo que vende é bom.

Na minha lista, incluí a minha grande paixão no pop-rock americano, o Counting Crows. A banda formada nos corredores de Berkeley, CA apresenta um som indefinível, mistura de uma melancolia blues, mais suingado e elaborado com timbres diferentes de teclado, uso de abuso de Hammond e mellotron. Por muito tempo foi conhecida como uma "one-hit band", banda de um só sucesso. Desde a enxurrada de "Mr. Jones", terceira faixa do primeiro disco August and Everything After, de 1993, só conseguiu lançar um novo hit nas rádios com "Accidentally in Love"; e não por mérito próprio, mas sim porque a canção faz parte da trilha de Shrek 2. A música não é ruim, muito pelo contrário, mas é uma sombra do que eles fizeram em seus quatro discos de estúdio.

Outro dia escrevi sobre as séries produzidas pelo Jerry Bruckheimer... E pouco depois, assistindo Cold Case, fiquei extasiado quando percebi a música de fundo: "Time and time again", de Adam Duritz e companhia, contemporânea de "Mr. Jones". Essa é uma das grandes qualidades dessa leva de seriados policiais investigativos, que já mostraram "Everything in its Right Place", do Radiohead, durante uma caça a evidências na cena do crime; e até o post-rock islandês do Sigur Rós ilustrando, morbidez absoluta, uma necrópsia.

Outra música cantada pelo Counting Crows que também se pode ouvir ocasionalmente no rádio é a versão de "Big Yellow Taxi", composta por Joni Mitchell durante a hippice dos anos 60. A versão dos Crows consta do disco Hard Candy, de 2002, mas quem procurar por ela nos créditos não encontrará nada. Ela está escondida na última faixa, depois de dois minutos de silêncio. Precisa estar muito desatento para escutar. E ainda assim, sabe-se lá como e por quê, resolveu-se fazer divulgação da música que nem no disco está direito. A letra diz assim: "They paved paradise / and put up a parking lot / with a pink hotel, a boutique / and a swinging hot spot".

Programa de índio, no bom sentido


A mesa paraense não pode dispensar uma panelada de pato ao tucupi, herança da culinária indígena. Não sei se o que eu comi seguiu essa receita, mas não tem como ir muito além disso. De todos os ingredientes, os principais são o pato, personagem principal; o tucupi, uma espécie de sumo da mandioca amassada, o coadjuvante de luxo; e o jambu, mato adormecedor de língua, o antagonista.

Ingredientes
1 pato novo (de 1,5 a 2kg)
20 g de cebola bem picada
4 dentes de alho amassados
salsinha picada
1 folha de louro
25 ml de vinagre de vinho branco
suco de 1 limão
sal e pimenta a gosto
4 colheres (de sopa) de azeite de oliva
noz-moscada ralada
4 xícaras de tucupi (800 ml)
folhas de jambu, chicória e alfavaca

Modo de preparo
Na véspera, cortar o pato nas juntas (dividir a carcaça em partes bem bonitas). Colocar numa tigela e temperar com o alho, a cebola, o vinagre, o louro, a noz-moscada, o azeite, o sal e a pimenta. No dia seguinte, colocar os pedaços de pato com o tempero numa assadeira e levar ao forno preaquecido, em temperatura média (180ºC), para assar, durante aproximadamente 35 minutos ou até que fiquem dourados. Retirar do forno.
Numa panela grande, ferver o tucupi, a chicória e o jambu. Acrescentar o pato e deixar cozinhar até a carne ficar bem macia, mas sem se desfazer (20 a 30 minutos).

Sônia, mãe da Sabrina, é paraense. Ainda hoje, tanto tempo sem voltar à sua terra natal (digo, Belém... Natal é Rio Grande do Norte), cultiva oa velhos hábitos gastronômicos dos antepassados. Pato ao tucupi não é prato de dia-a-dia, porque não é fácil - nem barato - achar farinha d'água, acompanhamento obrigatório, e o próprio tucupi no Rio de Janeiro. Mas vez ou outra se faz um almoço de domingo mais diferente, e lá está o pato assado na mesa.

A comilança começou com patas de caranguejo. Dá trabalho, mas é recompensador. Aliás, é por isso que hoje em dia somos, em média, mais gordos que antigamente: a nossa comida dá menos trabalho. É mais fácil abrir um saco de biscoito, esperar dois minutos para a pipoca estourar no microondas, do que catar frutas, caçar a carne, destrinchar o animal. O caranguejo nos leva para esses tempos, quando os índios do litoral, substituídos hoje pelas populações de manguezal, como em Guaratiba, se metiam na lama atrás do almoço.

O coco deu a água de beber e a carne para sobremesa. Fruta originária da Índia, acreditam os biólogos que tenha vindo para o Brasil a nado, flutuando pelas correntes marítimas até a costa do Nordeste brasileiro. Pois os coqueiros, dependentes de clima quente e úmido, já estavam bem estabelecidos quando os portugueses aqui chegaram.

A refeição indígena, mistura de tribos litorâneas e amazonenses, seguiu tranqüila. Só espero que não pretendam fazer um dia um cardápio antropófago, comigo como prato principal. Qual "João e Maria", podem estar planejando a minha engorda para os dias futuros. Que pelo menos até lá eu coma tão bem!

quinta-feira, março 02, 2006

Página virada


Há 10 anos a UERJ me acolheu em seu corpo de alunos, depois de um disputado vestibular para Medicina. Não passei de cara; quando veio a reclassificação eu já estava matriculado na UniRio.

Foram seis anos de faculdade; três de residência; com mais um ano de contrato administrativo como professor substituto de Endocrinologia, soma-se, ao todo, dez anos. Por mim ficaria mais, é difícil se despedir. Mas para ficar, teria que ser voluntário. E atualmente não está em tempo de eu trabalhar sem ganhar dinheiro.

Fica o meu agradecimento aos professores e aos alunos; aos staffs e aos residentes. Cheguei a dar duas aulas para o 4° ano, e orientei os internos no ambulatório. Assim como anos antes tive quem me desse aulas, quem me orientasse.

É difícil acordar e pensar que eu não vou para o Hospital Pedro Ernesto.

E só para me contrariar, amanhã eu vou. Vamos ver no que dá esse voluntariado, enquanto não tenho com o que encher minha semana de trabalho.

quarta-feira, março 01, 2006

Mar da tranqüilidade


Existem várias formas de se contar a História do mundo, e uma delas é através das guerras. Se a França é aquele hexágono (de uma geometria porca, é verdade, mas eles acham que sim...) no meio da Europa, e não um pouco mais para cá ou para lá; se o Havaí pertence aos Estados Unidos, e não a alguma nação ilhéu do Pacífico; se os limites territoriais do Oriente Médio dançam ao vento feito as dunas no deserto, ao sabor de sangue e petróleo; se o mundo, enfim, História e Geografia reunidos neste conceito, é como hoje o conhecemos, devemos isso a uma sucessão interminável de lutas, combates, batalhas, guerras que desenham fronteiras e moldam mapas.

Existe lugar mais bonito que a Costa Verde, como é chamado o litoral Sul Fluminense, desde Mangaratiba até Paraty, que se fecha na recatada Baía de Angra dos Reis? Bom, possivelmente existe, mas não na pequena porção de mundo que me foi permitido conhecer até hoje. E mesmo entre turistas profissionais, como certa vez atestou a revista Caminhos da Terra, têm esse paraíso em alta conta. Como é o caso do paisagista Burle Marx, que se declarou, à ocasião da Eco-92, um apaixonado por Paraty, um exemplo de preservação do patrimônio histórico e ambiental. Amyr Klink, empresário naval e lobo solitário dos sete mares, paulista de nascimento e paratiense de adoção, concorda. O homem que por mais de uma vez invernou na Antártica tem na enseada de Jurumirim o seu porto seguro.

Mas até aquele mar verde, reflexo da Mata Atlântica ali sobrevivente, já foi palco de muito derramamento de sangue. O Brasil português tinha pouco mais de meio século quando, entre 1554 e 1567, os colonizadores, aliados aos guaianazes através do casamento entre João Ramalho e a filha do cacique Tibiriçá, lutaram contra a Confederação dos Tamoios, reunião dos chefes indígenas do litoral sul fluminense e norte paulista liderada pelo tupinambá Cunhambebe, hoje nome de praia e ilha de Angra dos Reis. Com a chegada de Villegaignon e a esquadra francesa, estes se aliaram aos tamoios, aumentando o conflito na região.

Um século depois, a vila de Paraty veio a se emancipar após uma série de revoltas populares, culminando com a primeira formação da Câmara Municipal em 1667. Conta-se que, juntamente a Campos dos Goytacazes, no norte do Estado do Rio de Janeiro, foram as duas únicas cidades brasileiras a serem emancipadas através de revoltas populares.

Tudo isso é passado, mas é exatamente do seu passado que Paraty vive. Recebe milhares e milhares de turistas anualmente, de todos os cantos do planeta, desejosos de conhecer a cidade capaz de preservar o calçamento pé-de-moleque, as casas de arquitetura colonial, a Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Remédios. Se por tanto tempo, até a construção do trecho Rio-Santos da BR-101 no início da década de 80, esteve isolada, acessível apenas pelo mar, hoje os visitantes também podem chegar por terra ou ar.

Meu sogro tem um veleiro de 26 pés aportado na Marina Bracuhy, em Angra dos Reis. O barco é um hobby para ocupar sua aposentadoria. E, sempre que pode, recebe família e amigos para um passeio pela maravilhosa baía de Angra. Prefere, é verdade, ficar sozinho, ir para onde o vento sopra, sem compromisso de voltar hoje ou amanhã. Para esse carnaval, no entanto, ficou combinado de nos encontrarmos em Paraty. Ele já estaria lá, com uma vaga alugada na Marina do Engenho.


Carnaval, feriado de cinco dias, o trânsito sempre promete. No ponto onde a Rio-Santos brota da Avenida Brasil, em Santa Cruz, quatro pistas se transformam em uma. Impossível não haver congestionamento em dias de maior fluxo. Tentamos sair cedo, mas nem isso adiantou: domingo, 8 horas da manhã, já tinha carro a perder de vista. Por maioria simples de dois contra um, fui voto vencido: meia volta, tomamos a Via Dutra até Piraí, de onde sai a estrada para Angra dos Reis através de Rio Claro. Talvez tenha mesmo sido melhor; impossível ter certeza. Quatro horas e meia de viagem, ufa!, chegamos a Paraty em tempo de almoçar.


A marina, quem diria!, é de propriedade do Amyr Klink; e lá estavam as duas versões do Paratii - o primeiro, que o levou sozinho para a circunavegação polar e invernagem antártica, descrito em "Mar sem fim", no pier a três barcos de distância; e o segundo, com que atravessou todo o Atlântico de Norte a Sul em "Paratii entre dois polos", ancorado um tanto mais longe.

Com apenas a tarde para passearmos, Jorge, el comandante, nos levou até a Praia do Engenho, uma ponta além da enseada de Jurumirim, onde Amyr tem uma casa acessível apenas de barco. Adepto do isolamento, não deve estar satisfeito com a fama que seu reduto particular ganhou: vários veleiros e lanchas enchiam a enseada, como paparazzis à caça de uma foto com o ídolo. Mas no Engenho, para onde fomos, não estava tão cheio de gente.

Eu e Sabrina fomos nadando até a praia. No meio do caminho, fomos alertados: "olha, uma tartaruga!" Não sou louco de nadar de óculos: tudo que eu vi foi uma protuberância saindo da água, e acreditei se tratar de uma tartaruga. Melhor que um tarado nu nadando de costas. Voltei para pegar os óculos de mergulho, mas ela já tinha ido embora. Disse o nativo que a tartaruga usa a bóia ali instalada como abrigo, indo e voltando ao seu bel prazer. Mais tarde, já estávamos deixando a praia, quando ela voltou para aquele mesmo lugar. Enorme, o casco devia ter meio metro de diâmetro. Não é história de pescador!

No dia seguinte, com mais tempo, tomamos o rumo leste para a Ilha da Cotia. O céu nublado não diminuiu a temperatura. Faça sol, nuvem, chuva, não importa: o calor é o mesmo. Eu e Sabrina saímos para um passeio aquático: eu a nado, que é para me exercitar e perder os quilos acumulados; ela a remo, que é para não se molhar, fortalecer os braços e, principalmente, impedir que eu fosse atropelado por algum barco. Não é muito fácil de se ver um nadador no meio daquele mundo de água. Algumas centenas de metros adiante, subi no bote, e ela continuou remando, para felicidade de um grupo de americanos a bordo do Semper Fidelis, que gostaram de ver a mulher fazendo força no lugar do homem. Fizemos um pitstop no barco deles, e acabamos dando carona para duas meninas que queriam ir à praia.

Nas duas noites fomos ao centro histórico de Paraty. Talvez se trate do maior shopping center de arquitetura colonial do mundo. As casas são lojas de souvenirs, restaurantes, bares... E, inclusive, o Pub Paraty, reduto da juventude rock & blues do sul fluminense. Infelizmente não tive oportunidade de conhecer a casa; Sabrina, Sônia e Jorge sequer pensariam no assunto. Mesmo as ruas viraram loja: fazedores de bijuteria, vendedores de docinhos, e até um pintor-grafiteiro trabalhando ao vivo.

Carnaval é bom, feriado de quatro dias; mas acaba. É tempo de voltar, trabalhar feito gente grande, ganhar dinheiro para um dia ser eu a convidar. Mas, em tempo, por que comecei a falar de guerras, alguém mais curioso há de perguntar. Para bom entendedor, meia palavra basta. O texto até aqui deve ter sido suficiente.